Os sequestros de crianças durante a ditadura brasileira

Jul 24, 2022 en Jornalismo investigativo
Livro

Primeiro sequestram a pessoa. Depois sequestram a verdade. Essa é a trama que envolve os 19 casos narrados pelo livro Cativeiro sem fim, que conta a história de bebês, crianças e adolescentes que foram sequestrados pelas Forças Armadas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

O responsável por trazer estes casos à tona é o jornalista Eduardo Reina. O tema sempre o intrigou: por que as instituições brasileiras nunca se pronunciaram sobre o assunto apesar das evidências? Quando entrou em contato com uma vítima, ele encontrou o elo que faltava e o livro deslanchou.

Cativeiro sem fim é o único material em toda a bibliografia brasileira capaz de comprovar esse tipo de crime durante a ditadura militar. Nesta entrevista, Reina fala sobre as técnicas jornalísticas empregadas e a importância de redescobrir a história.

 

1. Quando surgiu seu interesse em investigar os casos de sequestros de bebês, crianças e adolescentes realizados pelos militares durante a ditadura brasileira?

A ditadura sempre esteve presente na minha curiosidade como jornalista e como cidadão brasileiro. Sabemos que existiu uma ação conjunta das forças militares para captura, prisão, troca de informações e prisioneiros aqui na América do Sul. Em países como Argentina, Chile e até Bolívia, houve sequestro de filhos de militantes políticos, mas no Brasil nunca se falou nada sobre isso.

Eu nunca consegui achar um fato ou uma testemunha. Até que, em 2015, um amigo criou uma editora e pediu que eu fizesse o romance de estreia. Escrevi Depois da Rua Tutoia, sobre a história de uma filha de uma militante política que foi sequestrada ao nascer e entregue a um empresário que financiava os órgãos de repressão. Eu queria lançar luz nesse assunto com uma linguagem simples e queria que alguém pudesse ler e se identificar. E não é que deu certo? O romance foi lançado em abril de 2016 e, dois meses depois, fui procurado pela filha de uma vítima, a Rosângela Serra Paraná, personagem do livro Cativeiro sem fim. [No que consta no livro, ela foi pega assim que nasceu, recebeu uma certidão de nascimento falsa e foi criada por uma família com histórico de vários militares.]

2. O livro traz um trabalho minucioso de investigação. Como foi o processo de apuração?

De 2016 até o final de 2018, viajei mais de 20 mil quilômetros no Brasil em busca das vítimas e de quem fosse ligada a elas. Eu utilizo uma técnica do jornalismo chamada paradigma indiciário, estudada por um historiador chamado Carlo Ginzburg. Você consegue ler nas entrelinhas o que está acontecendo e identificar informações. Na minha pesquisa, por exemplo, eu utilizei cerca de 150 livros escritos por jornalistas, militares e pesquisadores que, mesmo não citando esses crimes de Estado, me deram algumas informações.

Em um livro sobre os posseiros da região do Araguaia, o padre Ricardo Resende Figueira cita um padre francês chamado Roberto de Valicourt: “um camponês foi morto na mata e o filho dele foi levado pelos militares para um quartel”. A primeira coisa que eu fiz foi procurar o padre Ricardo, que preferiu não confirmar a informação. Semanas depois, encontrei Roberto de Valicourt, que disse: “Tenho receio de falar algo e não estar correto, mas confirmo a história: um camponês foi morto e o filho dele foi levado”. Tempos depois, li a dissertação de mestrado do professor Romualdo Pessoa, em que ele cita uma entrevista com o filho de um camponês cujo pai havia sido morto no Araguaia. Entrei em contato com esse professor, que me enviou a entrevista completa na qual José Vieira fala: “meu pai foi morto pelos militares na floresta e eu fui levado para um quartel do exército. Junto comigo foram mais quatro filhos de camponeses”. Eu procurei o José Vieira, que virou personagem e o visitei na cidade de Anapu, no interior do Pará.  [No que consta no livro, José Vieira teve certificado de reservista elaborado pelo Exército com data de nascimento falsa, para forçá-lo a prestar serviço militar.]

 

3. Você teve apoio de órgãos públicos no acesso a documentos e fontes?

Eu busquei o outro lado também, como o bom jornalismo manda. Procurei o Exército através da Lei de Acesso à Informação e eles disseram “a gente não tem nada a falar sobre isso”. É quase uma confissão de culpa quando você comprova um crime e a instituição afirma que não tem nada a dizer. Procurei também o Ministério da Defesa e a Aeronáutica, que também fez parte desse esquema de sequestro. Antes de sair o livro eu entreguei toda documentação para o Ministério Público Federal e para a Procuradoria Geral da República, onde foram abertos os procedimentos investigatórios sobre esses casos. Depois começou o governo Bolsonaro e tudo parou.

4. Desde a publicação do livro, algum órgão ou entidade se interessou em dar continuidade na pesquisa?

Antes de o livro sair eu procurei o Instituto Vladimir Herzog e propus uma parceria. Eles me ajudaram bastante na publicação, mas depois que entrou o governo Bolsonaro a coisa não foi para frente. Na Argentina, por exemplo, há registros de cerca de 500 casos de sequestros de bebês e crianças, e existem instituições da sociedade civil muito fortes que prestam apoio jurídico e psicológico, como as Avós da Praça de Maio. Aqui no Brasil a gente experimenta o caminho inverso: são os filhos sequestrados que buscam seus pais biológicos, sem nenhum suporte. Desde que o livro foi lançado, eu fui procurado por 55 pessoas que dizem ser vítimas desse crime. Elas vêm me procurar exatamente porque não existe uma instituição com um trabalho sério de reparação.

 

5. Você se alinha ao chamado jornalismo de redescoberta. Poderia explicar qual a diferença para outros métodos jornalísticos?

Já existe uma história da ditadura baseada em fatos, documentos e fontes militares. Mas existem também acadêmicos, jornalistas e pessoas que dão outra versão sobre essa história. Chama-se jornalismo de redescoberta por ser um jornalismo investigativo que traz à tona casos que ficaram mais de 40 anos ocultos na bibliografia, na academia e na mídia aqui no Brasil. Estamos redescobrindo e possibilitando a veiculação de uma versão dos fatos baseada no olhar de outras pessoas.

 

6. O que aconteceu desde o lançamento até hoje?

Eu recebi muita informação e muita contra-informação, ou seja, dados e informações que contrapunham certos pontos da minha pesquisa, como se eu estivesse sendo monitorado. A própria Rosângela foi procurada por um homem que disse: “Esquece tudo que o Eduardo Reina falou. Ele só quer dinheiro de você”. Como ele sabe tudo que eu falei? Sem contar que em nenhum momento eu pedi dinheiro a ninguém. Diretamente não fui ameaçado, mas esses recados indiretos, para bom entendedor meia palavra basta.

Ver meu livro-reportagem transformado em documentário é um sonho meu. Também gostaria de pesquisar novos casos a fundo, quem sabe fazer um volume 2. Além disso, o livro vai virar uma exposição no Museu das Memórias (In)possíveis, criado por uma organização de psicanálise do no Rio Grande do Sul que trata pessoas que foram presas e torturadas.


Foto: extraída da página sobre o livro no Facebook