O jornalismo pressupõe desafios para quem dele quer sobreviver. Literalmente. Um deles é o dissabor de sentir a morte bem de perto ou perder noites de sono em função de ameaças concretas vindas de inimigos, cujos planos são encurtar sua vida o mais rápido possível. Tudo porque você está prejudicando econômica ou politicamente interesses nefastos pelo fato de exercer uma condição primordial que seu ofício exige: investigar e denunciar.
Reunimos aqui histórias de três repórteres investigativos que precisaram mudar seus cotidianos por trazerem à tona verdades secretas e inconvenientes oriundas da criminalidade ou de ilegalidades cometidas pela classe política de suas cidades de origem. Por questões de segurança, seus nomes e veículos de comunicação serão omitidos. Dois deles fazem parte do Programa Estadual de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PEPDDH) do Rio de Janeiro.
Como funciona a proteção
O Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH) foi criado em 2004 por meio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, órgão vinculado à Presidência da República, dias antes do assassinato da missionária católica Dorothy Stang, em Altamira, no Pará, por defender a Floresta Amazônica e os direitos de trabalhadores rurais. Até o final de 2022, o programa era vinculado ao agora extinto Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, do governo de Jair Bolsonaro. Atualmente são 506 protegidos, não só profissionais da mídia, mas, por exemplo, ambientalistas.
O pedido de ingresso é feito pela própria pessoa ameaçada ou órgão público, ou ainda por movimentos da sociedade civil. Uma equipe técnica elabora um parecer com informações detalhadas sobre as provas de ameaças. Um conselho decide pela inclusão ou não da pessoa no programa. Ao ser comprovado risco ou ameaça à integridade física, a pessoa é direcionada a um endereço provisório. Muitas optam por mudar de cidade.
Os protegidos recebem atendimento de psicólogos, advogados e assistentes sociais. Equipes do judiciário e da segurança pública (que podem, ou não, dispor de policiais civis à paisana) monitoram os inquéritos de denúncias e os processos judiciais e administrativos. O prazo máximo do acolhimento provisório geralmente é de 90 dias, mas pode ser prorrogado dependendo da gravidade do caso.
Carro incendiado na porta de casa
O nosso primeiro personagem é Ricardo. Radialista, natural de uma região do estado do Rio de Janeiro dominada por uma facção política. Ele fazia denúncias num programa de rádio e na internet sobre a administração pública local, como a prática de licitações fraudulentas. Um prefeito chegou a aconselhá-lo parar com o trabalho. Até que, em 2021, atearam fogo em seu carro na porta de casa.
“Tentei correr para salvar alguns documentos, o laptop, mas não deu tempo. Esperei o Corpo de Bombeiros, mas só chegou uma hora depois com o carro completamente destruído pelas chamas”, relata Ricardo. Ele fez um boletim de ocorrência na delegacia e dois dias depois, uma amiga sugeriu o PEPDDH. Ele aceitou de imediato.
“Hoje não saio da minha casa e nem da minha cidade. Tirei minha mulher e filha de casa, estão em outro município e passei a não sair mais com elas. Minhas fontes sumiram, amigos sumiram”, diz ele. “Meus parentes queriam que eu parasse de publicar minhas matérias, mas não páro. A internet permite que eu consiga sobreviver das minhas poucas matérias”.
Milícias, bitcoins e um deputado
O segundo caso é de uma jornalista paulista que foi parar no Rio de Janeiro. Iremos chamá-la de Sabrina. Ela diz que desde a ascensão do bolsonarismo, sempre se viu em situações de risco. Entretanto, o fato que lhe rendeu maiores complicações foi um furo de reportagem sobre uma organização criminosa que faturava milhões com um esquema de pirâmide envolvendo bitcoins. O caso ganhou repercussão nacional. Desde então, tudo mudou.
“A partir daí fui muito hostilizada, fiquei com medo, eu não tinha a exata noção em que estava me envolvendo. O líder dessa quadrilha tinha dez matadores contratados pra acabar com qualquer pessoa que interferisse nos negócios dele. Podiam ser concorrentes, policiais ou jornalistas”, explica Sabrina.
Ela também diz que a chamada “banda podre da polícia militar e da civil” e as milícias odeiam seu trabalho. A vigilância de seus passos é uma constante, pois ela faz questão de dar voz às comunidades pobres locais em função da truculência das autoridades policiais infligidas a moradores pretos e periféricos.
“Eu denuncio ocupação irregular de espaço público, invasão de áreas de proteção ambiental pra construções ilegais. Mas eu não me intimido. Já tive bate-boca com miliciano, empresário corrupto, ao vivo e em redes sociais”, continua Sabrina.
Ela foi parar no PEPDDH por causa de um deputado estadual que se sentiu incomodado com uma denúncia publicada num grande veículo que ela repercutiu em seu website. “Ele me xingou tanto nas redes que tive que entrar com uma ação contra ele. Depois ele teve que pedir desculpas publicamente”, conta a jornalista.
Seis disparos
O terceiro caso envolve Rafael, também no estado do Rio de Janeiro. É o único dos três que não está protegido pelo programa, por escolha própria. Entre as denúncias jornalísticas já feitas por ele está o nepotismo no poder executivo da região que mora. Sete parentes do prefeito com cargos na administração pública: três primos, um tio, a irmã, o cunhado e a noiva.
Na noite de 17 de agosto de 2021, ele dirigia por uma estrada e ouviu seis disparos. Quatro acertaram seu carro. Ele só sobreviveu porque o veículo é blindado, uma precaução que ele tomou após sentir que sua vida estaria em risco.“Ainda existe esta política do coronelismo, a verdade é essa. É o domínio de um só clã, que é o que domina o município atualmente”, afirma Rafael.
O jornalista conta que precisa tomar remédios para dormir e para a pressão, que piorou depois que tudo aconteceu. A diabetes também está mais difícil de controlar. “Na verdade, esse episódio só me fez ter muitos gastos. Hoje eu monitoro todo o meu bairro com câmeras de segurança, adquiri vários problemas de saúde como depressão, ansiedade... uma síndrome horrível de pânico”, diz ele.
Nenhum dos nossos personagens pensou em desistir das suas atividades, mesmo com os traumas psicológicos que carregam e as sequelas físicas que precisarão administrar pelo resto da vida. “Voltar ao normal vai ser um pouco difícil, a sensação é horrível. Só quem viveu, sabe descrever. Mas vou continuar mantendo meu posicionamento, fazendo um jornalismo sério pautado na verdade, doa a quem doer”, sintetiza Rafael.
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