O jornalismo de carona nas asas da poesia

بواسطة Chico Walcacer
Dec 17, 2023 في Temas especializados
Poesia

“quando a vida bater forte

E sua alma sangrar,

Quando esse mundo pesado

Lhe ferir, lhe esmagar...

É hora do recomeço.

Recomece a lutar”

No instante exato em que os versos iniciais do poema ´recomece´ são declamados, a multidão silencia. Para as milhares de pessoas que lotam a praça principal da cidade, esse é o momento mais aguardado da noite. Estamos em Afogados da Ingazeira, município pernambucano na bacia do Rio Pajeú, divisa com a Paraíba. Bráulio Bessa é a atração principal da feira de empreendedorismo organizada pela prefeitura do município de cerca de 40 mil habitantes.

De frente para o palco iluminado e emoldurado pela belíssima catedral da cidade, uma parcela considerável da população acompanha em transe o recital do poeta, ativista, escritor e cordelista cearense de 38 anos. Muitos dos espectadores já decoraram os versos da sextilha – forma característica da literatura de cordel onde as estrofes são compostas por seis versos e cujo maior expoente é o também cearense Patativa do Assaré.

A atmosfera de emoção cresce na medida em que as rimas descortinam as dificuldades impostas pela vida e apontam caminhos de reconstrução e recomeço. Algumas pessoas choram, mas não há fanatismo: a voz mansa do poeta embala e conforta. A comoção se repete de cidade em cidade. A palestra-espetáculo que reúne poesia e muita prosa já passou pelo interior paulista e pelos estados de Santa Catarina, Minas Gerais e Paraíba. Tem sido assim nos últimos anos.

Nas redes sociais, os números também impressionam: mais de 5 milhões de seguidores que acompanham no Instagram a jornada de trabalho incessante e a rotina pacata em família de um sujeito boa-praça, casado com Camila e pai de Nalu, que gosta mesmo é de jogar conversa fora na calçada em Alto Santo, cidade do sertão onde nasceu e acaba de construir uma casa nova. Não há registro de que outro poeta brasileiro já tenha arrebatado um público tão expressivo – e diversificado. Bessa fala direto ao coração do povo. Sim, o poeta é pop. E coube à nossa equipe tentar entender e mostrar o que existe por trás desse fenômeno.

O holofote da TV Aberta

Bráulio ganhou projeção em 2014, quando começou a participar do programa ‘Encontro com Fátima Bernardes`, nas manhãs da Rede Globo. A boa audiência do quadro ´poesia com rapadura´ e a reação dos convidados, ao vivo, já refletiam a força das rimas daquele rapaz que fazia questão de se apresentar com chapéu de couro, um símbolo do sertanejo. O sucesso na tv se estendeu ao mercado editorial e seus livros lideram com frequência as listas de mais vendidos.

Aos poucos, passou a escrever sobre temas específicos relacionados à eventuais pautas do programa: poema para o dia das mães, sobre medo, contra a homofobia, contra o racismo... não foram poucas as vezes em que apresentadora e convidados terminavam em lágrimas. Do outro lado da telinha acontecia o mesmo: telespectadores lotavam a caixa-postal do programa de cartas e e-mails. A jornalista Duda Martins, produtora do programa, percebeu o impacto daquela poesia e propôs um documentário à direção do Globoplay. Foi assim que nasceu o ´Poesia que Transforma´

Definição dos personagens

O primeiro desafio foi filtrar as centenas de histórias enviadas por telespectadores e leitores - e definir os personagens. A ideia era que representassem a diversidade da população brasileira, com pessoas de diferentes idades, regiões, perfis e realidades. Com o trabalho primoroso de uma equipe de pesquisadores, foram reunidos 17 personagens.

Entre os escolhidos estão, por exemplo: uma mulher que teve o rosto e o corpo queimados pelo ex-companheiro e encontrou no poema ‘recomece` um propósito de vida e o professor que usa os versos de Bessa para alfabetizar crianças e adultos em uma comunidade ribeirinha no Amazonas. O documentário foi dividido em 5 episódios apresentados por temas, presentes na vida do Bessa e dos personagens: raízes, amor, igualdade, fé e recomeço.

Produção em plena pandemia

O trabalho de pré-produção de um documentário desse porte é fundamental. A complexa logística que envolvia equipamento, transporte e hospedagem se somava aos desafios de filmar em lugares com estrutura mais precária. Para dificultar ainda mais, tudo foi feito em pleno auge da pandemia: equipe e personagens eram testados para Covid a cada 4 dias, e usávamos máscaras o tempo inteiro. O próprio Bessa teve a forma grave da doença, ficou internado - e interrompemos as filmagens (passagem mostrada no documentário). 

A equipe de produção teve que organizar roteiros de viagem que aproveitassem a maior proximidade entre determinadas locações. Foram cerca de 70 dias de gravações em 17 cidades de 10 estados brasileiros. A equipe de viagem era formada por dois diretores (Duda Martins e eu),  um diretor de fotografia (Lucas de Oliveira), uma assistente de direção (Valentina Denuzzo) e um operador de áudio (Levi Ferreira), responsável pelo som direto -  além do essencial trabalho dos motoristas. 

Equipe do documentário
Bráulio Bessa e a equipe do documentário

A força da palavra

O mais fascinante do processo de dirigir o documentário foi mergulhar no universo poético de Bessa e, ao mesmo tempo, estabelecer uma conexão profunda com as batalhas diárias de personagens que sofrem com as mazelas de um brasil desigual. Com uma câmera ligada e disponibilidade para ouvir atentamente o que as pessoas têm a dizer, o resultado será sempre um jornalismo comprometido com a busca pela verdade. Essa escuta é a essência do trabalho de reportagem, seja ele voltado para o noticiário factual ou para as pautas mais produzidas, como documentários. 

É igualmente importante estudar o tema e ter em mãos um roteiro bem elaborado – sem perder a concentração no que está sendo dito -, para que se possa rebater e questionar pontos de inflexão que surgem espontaneamente. Perder o fio da meada não é uma opção. Não foram poucas as situações em que fomos surpreendidos antes de seguir a trilha do jornalismo.

Esses desdobramentos muitas vezes acabaram nos levando ainda mais fundo e revelando novas camadas das histórias. Como por exemplo na trajetória do menino apaixonado por poesia que mora numa casa de palafitas à beira do rio Tapajós, no Pará, onde professores lutam pelo direito de lecionar. A força e o empenho de uma professora acabou dando ainda mais força e emoção à essa passagem do documentário. Ou a jornada do músico baiano adepto do candomblé que enfrenta o racismo e combate a intolerância religiosa no Pelourinho. Ele nos conduziu numa cerimônia nas águas das Lagoa do Abaeté.

Todas histórias atravessadas pela poesia. E reveladas pelo bom jornalismo.


Fotos: Arquivo pessoal Chico Walcacer


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