Os gritadores de notícias da Idade Média

Mar 26, 2023 في Temas especializados
Gritador medieval

“Ouçam, ouçam”! Gritava o homem depois do toque da sineta, de cima do estrado de pedra que servia de púlpito na praça principal da vila. Homens, mulheres e crianças se aglomeravam em torno dele, enquanto desenrolava o pergaminho que trazia cuidadosamente acondicionado.

Em alta voz, o homem iniciava a leitura das mensagens. Esta era a missão do gritador público de notícias, um ofício da Idade Média, no qual a pessoa encarnava a ponte de comunicação entre uma população praticamente analfabeta e as notícias do mundo, mesmo que este mundo estivesse limitado a uma vila fortificada ou a um reino. Os anúncios eram feitos nos espaços mais propensos à reunião de uma grande quantidade de pessoas como as praças públicas ou mesmo em frente à igreja nos dias de domingo.

Assim como as badaladas dos sinos das catedrais, os gritadores de notícias eram partes indissociáveis da paisagem sonora da Idade Média. Estes homens, e também mulheres, eram os responsáveis pela difusão dos textos oficiais e das boas novas, das mercadorias à venda, do preço do vinho, das ordens do rei, dos impostos e dos torneios, e em alguns casos, pelo anúncio das horas. Também eram eles quem noticiavam as mortes do dia, os incêndios, as crianças ou as chaves perdidas, os informes sobre guerra e os conflitos da região.

Um gritador que trabalhou por 50 anos

Os gritadores de notícias foram figuras centrais do organismo social medieval. Foi o que concluiu o historiador francês Nicolas Offenstadt ao examinar os arquivos do século XV da cidade de Laon, na França. Inicialmente, a pesquisa de Offenstadt tratava sobre a paz na Idade Média e os mecanismos de como esta paz era comunicada. Ao longo de sua pesquisa, o historiador deparou-se com a figura dos gritadores de notícias, personagens que eram frequentemente mencionados nos registros contábeis das cidades. Offenstadt decidiu então investigá-los.

Durante o exame dos arquivos de Laon, Offenstadt descobriu um nome: Jean de Gascogne. O historiador percebeu que ele aparecia com frequência nos documentos contábeis da vila por cerca de cinco décadas, o que comprovava sua atividade profissional e também sua longevidade (algo excepcional na Idade Média). Seguindo pistas nos registros contábeis, Offenstadt começou a traçar a história deste gritador público de notícias e deu voz ao personagem em sua obra En place publique: Jean de Gascogne, crieur du XVe siècle (em língua portuguesa, “Em praça pública: Jean de Gascogne, gritador do século XV”).

“As receitas e as despesas da vila são feitas de fontes que, na Idade Média, são muito falantes (...) quer dizer que para o pagamento de um mensageiro ou de um gritador público pode-se encontrar uma história completa do acontecimento político descrito em diversas linhas ou mesmo páginas”, diz o historiador em entrevista gravada no podcast da rádio France Culture Les crieurs publics au Moyen Age (“Os gritadores públicos na Idade Média”). Literalmente em francês, os gritadores de notícias são denominados “gritadores públicos” (crieurs publics).

Gritador e seus ouvintes

 

Das quase oito décadas que viveu, Jean de Gascogne, gritou notícias na vila de Laon por cinquenta anos. É o que testemunham as contas urbanas ao registrarem seu pagamento pelo “cri” (grito, em francês). Este emprego, além de outros serviços esporádicos, valeram a Gascogne o privilégio de morar em um alojamento situado em um dos portões de entrada da vila fortificada, localização estratégica para o ofício e para acompanhar inúmeros fatos sociais que ali ocorriam.

Os gritadores modernos

De forma folclorizada, há muitas cidades europeias que ainda mantem o serviço de gritadores de notícias para promover o turismo, pois estes personagens realçam o caráter tradicional e histórico do local. Na Inglaterra, um grupo de gritadores de notícia (town criers) criou uma associação chamada Loyal Company of Town Criers, que já existe há 30 anos. Ela reúne mais de sessenta membros, homens e mulheres, distribuídos em diferentes cidades do país.

Gritadores ingleses em 2022

 

A associação inglesa organiza campeonatos anuais de gritadores de notícia. No ano passado, por exemplo, a competição de Warwick contou com dez gritadores de notícias. Entre os quesitos de avaliação do melhor gritador estão a clareza de dicção, a inflexão e o volume da voz. Embora o grupo seja inglês, a fórmula oral utilizada para abrir os trabalhos continua a mesma utilizada no francês medieval “oyez, oyez, oyez !” que em português pode ser traduzida como “escutai, escutai, escutai!”.
 

Seriam os gritadores, os precursores dos nossos radialistas? O historiador Offenstadt considera que o gritador público de notícias foi, sem dúvida, uma profissão fundamental na sociedade política medieval, pois eram estes gritadores itinerantes os responsáveis pela transmissão das ordens e das palavras das autoridades. “Ele [Jean de Gascogne] é um gritador púbico, então é ele que durante décadas foi, de certa forma, a voz da vila na praça pública (...) é preciso imaginá-lo andando regularmente pela vila de Laon para anunciar as medidas, para anunciar também os perigos, os incêndios. É realmente alguém que foi a voz do poder”, diz. 


Foto principal: Visão de artista sobre um gritador de notícias da Idade Média. O personagem é uma criação para o jogo  em vídeo  Doctor Who: the Gunpowder Plot. Imagem: Atomhawk/ montagem: Canva.

Nesta outra reportagem aqui você encontra uma versão dos gritadores de notícia numa comunidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. 


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