O criador de conteúdo que capta o Rio de Janeiro de madrugada

Автор Fabio Leon
Feb 18, 2024 в Inovação da mídia
Cineasta da madrugada

Munido de um smartphone e numa bicicleta, um homem de 35 anos natural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, desafia os perigos da noite, filmando ruas, estradas, becos, passarelas, passagens subterrâneas e demais cenários da vida urbana.

Sempre por volta das 2 da manhã, enquanto (quase) todos dormem, ele registra, em suas pedaladas, a escuridão total (ou ruas mal iluminadas) de cidades periféricas ou da capital do Rio de Janeiro que se tornam potencialmente mais ameaçadoras quando não estão mais regidas pela luz do sol.   

Cineasta com identidade preservada

Desde 2021, um criador de conteúdo visionário em seu propósito midiático e que prefere não ter a identidade revelada, é o responsável pelo canal “Madrugada RJ”. No Youtube ele contabiliza mais de 92 mil inscritos e no Instagram ultrapassa a marca de 26 mil seguidores.

“Madruga” é como ele prefere ser chamado. “O anonimato serve para que eu não teça opiniões sobre o que eu filmo. A pessoa vê os vídeos e tira a suas próprias conclusões", diz o criador de conteúdo. "Como o canal viralizou nesse formato, eu preferi não alterar em nada o roteiro”.

Tudo começou a partir de uma curiosidade pessoal. “Eu era fascinado pelo cenário das ruas vazias, o silêncio, o fato de que, de dia, milhares de pessoas frequentam um lugar e, de madrugada, o mesmo lugar se transforma por ser totalmente deserto", explica Madruga. "Não me espelhei em nada do tipo. O que eu quero mostrar é o que ninguém mostra”.

Risco calculado

Sobre o risco e o perigo constantes aos quais se submete ao postar os vídeos, Madruga confia unicamente na familiaridade adquirida em circular por esses espaços, graças à sua experiência de trabalhos noturnos.   

"Eu sei como a cidade funciona. Sempre andei na madrugada e a experiência de ter passado por tantas coisas acabaram me ajudando a lidar com determinadas situações, como tomar a melhor decisão numa situação de risco", explica ele. "Os meus sentidos ficam aguçados, eu vejo de longe, eu ouço melhor e sou muito intuitivo. Não ignoro o fato de gravar numa cidade violenta. Então realmente tomo bastante cuidado.”

Reconhecimento de profissionais da área

O cineasta Marçal Vianna, também de Nova Iguaçu, participou de festivais de renome como o Festival de Cinema de Gramado, e coleciona premiações. Ele se interessou pelo conteúdo de Madruga. “Eu lembro que a primeira vez que eu vi Madrugada RJ eu fiquei muito aflito, porque todo mundo que mora numa periferia sabe o quão perigoso é aquilo que ele está fazendo", diz Vianna. "O que ele faz dá de dez a zero em qualquer filme de terror, porque quando a gente vai andar na rua, nós somos sempre orientados a guardar o celular e escondê-lo. E aquilo ali é uma quebra do sistema. Ele usa a internet e o audiovisual a seu favor. Esse canal mexe muito com a nossa sensibilidade. É realmente uma ideia formidável.”

As imagens são acompanhadas de uma trilha sonora que, de fato, facilita a experiência de tensão, apreensão e medo. Mas Madruga revela que a música escolhida foi apenas uma solução técnica para calibrar problemas de áudio que surgiam durante as filmagens.  

"Nos primeiros vídeos não existia a trilha sonora. Eram no formato de som ambiente. Porém ao andar na bicicleta, a velocidade aumentava o barulho do vento e ia ficando insuportável de ouvir. Era muito alto e atrapalhava a imersão dos internautas. Por isso que eu acabei mutando o vídeo e colocando uma música de fundo", explica Madruga.  

O medo como chamariz

Embora Madruga não seja um jornalista de formação, é inegável, porém, que os minutos mostrados em tela, têm muito a dizer sob a perspectiva de uma releitura de processos comunicacionais de massa consagrados, mais especificamente os que envolvem a produção audiovisual e jornalística.  

Nas Teorias do Jornalismo e da Comunicação de Massa existe uma considerável produção de análises que tratam do medo e do risco como peças basilares para certas narrativas midiáticas, especialmente as da mídia televisiva de caráter policialesco, que parecem transformar o mundo em um lugar muito mais ameaçador do que realmente é.

Mas foi um sociólogo norte-americano que cutucou a ferida com precisão cirúrgica. A inquietação de Barry Glassner se transformou no livro “A Cultura do Medo”  tornando-se uma referência no início da década de 2000 e que inspirou a criação de “Tiros em Columbine”, de Michael Moore. Neste documentário, a mídia jornalística estadunidense é colocada na berlinda como potencial produtora de adoecimento mental nas audiências ao construir uma permanente sensação de insegurança ao potencializar as notícias sobre criminalidade e pobreza. Para o sociólogo, em geral os jornalistas tendem a transformar incidentes comuns em novos e grandes vilões.

Tatiana Lima é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela Universidade Federal Fluminese (UFF) e Mestre em Mídia e Cotidiano pela mesma instituição. Utilizando os estudos de Glassner e observando as postagens do “Madrugada RJ”, ela traz novos elementos que podem ilustrar as escolhas narrativas de Madruga, bem como o sucesso de sua criação.

"No caso do Madrugada RJ, acredito que ele não reforça a sensação de insegurança ou violência. Ele oferece um ponto de vista que causa conflitos em relação ao nosso imaginário popular, uma percepção quase lúdica da insegurança, mas sem apelar para os pragmatismos da mídia", analisa Lima.

Interação com o público

O reconhecimento do trabalho rendeu a Madruga uma história, no mínimo, curiosa. Certa vez, fazendo uma live em mais uma de suas pedaladas, Madruga recebeu um aviso de um internauta que assistia à transmissão ao vivo. Foi alertado sobre o confronto armado previsto para acontecer nos próximos dias na região chamada de "Ás de Ouro", no bairro de Anchieta, na zona norte do Rio. Fato que realmente ocorreu: uma disputa entre traficantes rivais pelo controle do tráfico na referida comunidade e noticiado posteriormente. Se estivesse na seara jornalística, Madruga poderia ter tido no currículo o seu primeiro “furo de reportagem".


Foto: arquivo pessoal Madruga.


Другие статьи