“Não há como o jornalismo exercer seu verdadeiro papel social sem representatividade dentro das organizações tradicionais, e sem o reconhecimento das organizações jornalísticas das periferias, das favelas.” A afirmação vem de uma jornalista catarinense que abraçou a luta pela diversidade na comunicação. Simone Cunha participou como fellow do programa Fall 2021 do ICFJ, e é uma das diretoras da ONG Énois - um laboratório social que trabalha para promover a representatividade e a inclusão no jornalismo brasileiro. Fundada em 2009, a organização já capacitou mais de 5 mil estudantes, em sua maioria jovens de baixa renda que produzem e compartilham conteúdos sobre o cotidiano nas comunidades onde moram.
A trajetória dela começou na grande imprensa – trabalhou em veículos como Folha de S. Paulo, OGlobo e G1. Em 2009, cruzou o oceano para fazer mestrado em Sociologia, na Universidade Nova de Lisboa. Quando voltou, já não tinha mais a mesma motivação para trabalhar nas redações tradicionais, e começou a pensar em alternativas para sua vida profissional.
Um manual para jornalistas da periferia
Em 2016, quando entrou para a Énois, Cunha mergulhou no universo do jornalismo comunitário. O trabalho de capacitação dos jovens transformou seu olhar sobre a realidade: “foi uma explosão na minha cabeça! Jovens de ensino médio, com acesso muito precário à internet, mas ao mesmo tempo com uma vontade muito grande de falar sobre o seu cotidiano, sobre os seus valores, sobre a vida nas quebradas, nas favelas", conta a jornalista. "Começamos a nos questionar quem são os jornalistas e os autores que a gente deveria trazer para pavimentar o caminho deles no jornalismo – nós, todos brancos e de classe média, vindos da nossa experiência de vida, e não da deles.”
O projeto de Simone no fellowship do ICFJ teve como produto um manual para elaboração de projetos e captação de recursos. A publicação, voltada principalmente para os jornalistas comunitários das periferias, surgiu da observação das necessidades específicas desse público. Segundo ela, muitas organizações jornalísticas começam nesses locais de forma voluntária, para servir aos interesses da comunidade. À medida que o trabalho amadurece e se expande, os colaboradores precisam dedicar mais tempo, mas muitas vezes é difícil conseguir remuneração. “O que eles fazem é sim jornalismo profissional, então também é digno de ser pago para manter a vida dessas pessoas que trabalham com isso. A ideia de elaborar esse manual é falar sobre captação de recursos, sobre busca de dinheiro, de financiamento, e tirar isso de um lugar de tabu.” O Manual de Escrita de Projetos já está disponível para download gratuito no site da Énois.
Experiência com a comunidade hispânica dos EUA
O período de embedment de Simone foi vivenciado na Entravision, um dos maiores grupos de comunicação dos Estados Unidos. Ao longo de quatro semanas, a editora Lyan Babilonia apresentou a rotina de produção do portal Noticias Ya, voltado para a comunidade hispânica do país. Por se tratar de uma organização de grande alcance, ela buscou aprender sobre as estratégias de relacionamento com o público do portal: “Eles têm um plano de negócios focado em grandes anunciantes. Observei a rotina de produção de notícias locais, como se dão os vínculos com a comunidade, como o público é retratado e quais as formas de financiamento.”
A proposta apresentada por Cunha ao ICFJ prevê ainda a mentoria de dez organizações jornalísticas em 2022. Ao longo de um ano, os jornalistas vão aprender como é possível captar recursos de diferentes fontes para tornar as redações sustentáveis.“Como o jornalismo é um serviço público, a gente não pode perder isso de vista. A gente não está buscando um financiamento para um produto, um negócio qualquer", diz Cunha. "O financiamento precisa estar ligado ao propósito da organização jornalística, que é servir a uma comunidade específica. É preciso orientar essas redações sobre como acessar empresas, fundações, mostrando o seu valor na prestação de serviços à comunidade.”
Simone acredita na missão inclusiva do fellowship, e defende a participação cada vez maior de jornalistas de diferentes origens. “É muito importante e necessário que o ICFJ tenha cada vez mais pessoas com experiências sociais diversas, com diferentes jeitos de fazer o jornalismo. Isso vai permitir que o programa só melhore.”
Foto: Arquivo pessoal de Simone Cunha