Em um país dividido pela polarização política, que papel o jornalismo e o uso de dados podem desempenhar na melhoria da qualidade do debate de interesse público?
Esta é uma questão importante na Venezuela, um país em que o presidente Nicolás Maduro diz falar com o espírito do falecido presidente Hugo Chávez através de um "passarinho" e criou um Ministério da Felicidade Suprema. Enquanto isso, o partido de oposição mais extrema queima bandeiras cubanas e chama o presidente de "novo Pinochet."
O jornalismo de dados pode cumprir um papel importante lá. Pode fornecer novos recursos tecnológicos para jornalistas, programadores e designers, proporcionando uma maior sustentação para os fatos e redefinindo a forma como as pessoas no jornalismo trabalham coletivamente e individualmente.
Essas foram as lições que tirei do primeiro Bootcamp de Jornalismo de Dados na Venezuela, em Caracas. Cerca de 100 profissionais, escolhidos entre 250 candidatos, participaram do treinamento de três dias.
O grande interesse no evento pode ser explicado pela necessidade dos candidatos e participantes em acelerar seus conhecimentos práticos e capacidades tecnológicas para utilizar dados e integrar metodologias de trabalho interdisciplinares em suas rotinas diárias.
Eu ajudei a organizar o acampamento como parte da minha bolsa do ICFJ Knight International Journalism Fellowship. O evento teve o apoio do Carter Center Venezuela e o Institute of Press and Society (IPYS). Obteve um apoio sem precedentes da mídia tradicional, incluindo o Bloque de Armas, Unión Radio, Panorama, Cadena Capriles, Globovisión e Banesco.
Ferramentas, scraping, dados abertos e narração interativa
O programa intensivo cobriu todos esses aspectos. Em mais detalhe, incluiu uma Introdução ao Jornalismo de Dados; um workshop de scraping básico utilizando Google Spreadsheets, Scrape Similar e Fusion Tables, realizado por Juan Eduardo Hernández (desenvolvedor chefe da Poderopedia); uma aula magistral da acadêmica venezuelana María-Esther Vidal sobre dados abertos na Venezuela e o muito que a Venezuela precisa melhorar comparativamente nesse campo; um workshop introdutório de visualização de dados de Alastair Dant (programador do New York Times e ex-chefe da equipe interativa do jornal Guardian), e uma inspiradora palestra sobre Narração Visual de Mariana Santos, designer interativa e ICFJ Knight Fellow, que começou com uma sessão de dança... (sim, dança).
O treinamento também teve uma mini hackatona. Os participantes propuseram projetos e se familiarizaram pela primera vez em sua vida profissional com técnicas de prototipagem rápida, pensamento visual, "elevator pitch", “produto mínimo viável” e metodologia ágil de organização do trabalho. As 40 ideias propostas publicadas no dashboard do treinamento refletem o interesse em tornar transparentar os muitos dados das situações complexas atualmente na Venezuela. Delas, 10 projetos viraram realidade, usando ferramentas como:
- Popcorn
- Zeega
- Vyclone
- Videolicious (remix audiovisual)
- Datawrapper e Infogr.am (gráficos e infográficos básicos)
- Open Street Map
- GlobalWamp
- Fusion Tables (mapeo)
- Miso e Raw (bib javascript de visualizaciones)
- Outras como Poderopedia, Open Data Latinoamérica, TimelineJS, Scraperwiki, Scraper, Cargografías, Tabula e Open Refine.
Eleições, beisebol e mais
Entre os projetos vale destacar " Camino al 8D", um gráfico e linha do tempo comparativo das votações e prefeitos eleitos nas eleições venezuelanas de 2000 até o presente. Este projeto, criado antes das eleições municipais da Venezuela em dezembro, usou um banco de dados público para mostrar as curvas de crescimento e diminuição do número de votos ao partido oficial contra o partido de oposição.
Outro projeto de sucesso, focado em beisebol, o esporte nacional da Venezuela, foi "Chamos Peloteros", da equipe do programador da Cadena Capriles Asdrubal Chirinos. O projeto extraiu um banco de dados de informações sobre jogadores venezuelanos de beisebol nos Estados Unidos e examinou suas características demográficas, como idade média, lugar de origem na Venezuela, valor de bônus assinado e as posições que jogam.
Graças à prática oferecida no treinamento, Chirinos disse, sua equipe ganhou a versão venezuelana da Americas Datafest para competir a nível mundial no concurso (veja o projeto aqui).
Outros grupos criaram projetos que rasparam e visualizaram dados relatios à "migração de jogadores de futebol ; um mapa sobre a igualdade de casamento na América Latina; e sobre os modelos das motos mais roubadas na Venezuela.
Houve aqueles que usaram o Bootcamp para organizar grandes bancos de dados, como os milhares de jornalistas sindicalizados no Colégio de Jornalistas do país. Outros usaram as ferramentas destacadas para realizar protótipos básicos que vão continuar a usar em seus trabalhos, para revelar padrões e conexões em temas como a influência da Monsanto na América Latina; radioterapia; as Forças Armadas bolivarianas e a migração venezuelana.
O ponto central do treinamento, de acordo com os resultados de uma enquete enviada aos participantes (na qual a maioria indicou que a atividade "excedeu as expectativas"), foi aprender a trabalhar em equipes interdisciplinares, aprender novas ferramentas e desenvolver uma compreensão de como a usar grandes conjuntos de dados para investigar e contar notícias , sob o aforismo jornalismo: "Se a sua mãe diz que te ama, verifique."
Dados versus opinologia
No momento atual na vida política da Venezuela, a "verdade" parece ser a primeira vítima da polarização. Esta polarização tem permeado muitas áreas de debate e análise com conceitos como a “guerra econômica”. Nesse ambiente, o treinamento serviu para promover e enfatizar técnicas de pesquisa com base na verificação empírica dos dados e na prática do jornalismo de qualidade.
Quem está falando a verdade? Como podemos verificar? O que distingue a verdade de uma opinião vinda dos mais altos escalões do poder ou uma declaração vestida de fato coletada de adversários fofoqueiros? Como separar as opiniões dos fatos com base em dados concretos e verificáveis? Estas foram perguntas abertas discutidas durante a reunião. Isso foi especialmente verdadeiro no terceiro dia do encontro, quando um pequeno grupo de profissionais do mundo do jornalismo de investigação analisou as limitações legais para o livre exercício do jornalismo e aprendeu em detalhe como usar a plataforma Poderopedia para mapear as conexões dos políticos e elite de negócios na Venezuela.
Com base no interesse que encontramos na plataforma na Venezuela, pretendemos lançar um capítulo da Poderopedia no país nos próximos meses.
Encontrando histórias enterradas nos PDFs do governo
Outro grande resultado do treinamento foi uma investigação sobre as empresas autorizadas pelo governo venezuelano para trocar bolívares por dólares, a fim de comprar produtos para importação para a Venezuela.
Jornalistas da Venezuela frequentemente consultam os documentos do governo de quantos bolívares uma empresa foi permitido trocar de dólares por CADIVI (Comissão de Administração de Divisas Venezuelana), que é responsável pelo controle de câmbio). Mas ninguém ainda tinha adotado um olhar abrangente sobre as principais empresas autorizadas a aceitar dólares e exatamente quanto dinheiro estão recebendo.
Usando o que aprendeu no treinamento, o jornalista Cesar Batiz transformou os dados brutos em um banco de dados pesquisável. Com a ajuda de María Esther Vidal, professora da Universidade Simón Bolívar, ele fez um ranking da lista de empresas aprovadas pela CADIVI para trocar bolívares por dólares acima do limite permitido pelas autoridades. A investigação, publicada no jornal Últimas Noticias, destacou o caso de Tiendas Daka, uma empresa de varejo, acusada pelo o governo de marcar ilegalmente os preços de aparelhos importados.
A investigação revelou os nomes dos proprietários, suas operações no Panamá e seu domicílio eleitoral na Venezuela. A empresa também estava entre as 20 maiores empresas que receberam dólares.
Graças às ferramentas que Batiz adquiriu no treinamento, uma importante história econômica está sendo contada e novas maneiras de obter respostas a partir de dados estão sendo usadas para revelar o potencial de corrupção ao público venezuelano.
Miguel Paz é um jornalista chileno e fundador e CEO da Poderopedia, um site de jornalismo de dados, que destaca as ligações entre as empresas e elites políticas chilenas. Leia sobre seu projeto da bolsa Knight aqui.
O conteúdo de inovação de mídia global relacionado com os projetos e parceiros dos bolsistas do Knight International Journalism Fellowsship na IJNet é apoiado pela John S. and James L. Knight Foundation.
Imagem do treinamento do IPYS, cortesia de Miguel Paz