No mundo efêmero da Internet, onde um novo guru digital ou especialista em mídia social parece nascer a cada minuto, Gumersindo Lafuente possui a rara qualidade de ter uma longa carreira como inovador em mídia digital.
Lafuente esteve envolvido no departamento digital de dois dos mais importantes jornais em espanhol: El Mundo, onde foi chefe da seção digital, e El País, onde supervisionou a transição digital.
Mas um de seus projetos mais significativos foi um esforço independente, o Soitu.es, que mexeu com o cenário da mídia na época.
O Soitu, um site de notícias lançado em 2007 que se concentrou fortemente no aspecto de compartilhamento social de notícias e fez um uso inovador de ferramentas tecnológicas, foi muito elogiado e ganhou vários prêmios (incluindo dois prêmios da Online News Association), mas o empreendimento fechou em 2009 porque não tinha fundos.
Agora, Lafuente está lançando Por Causa.org, uma fundação que produz projetos de jornalismo de dados sobre questões relacionadas a desigualdade e pobreza.
Por Causa é uma colaboração entre Lafuente; o especialista em desenvolvimento e pobreza Gonzalo Fanjul; a especialista em direitos humanos Isabel de las Casas; e Carlos Martínez de la Serna, um repórter de jornalismo de dados e agora bolsista Knight-Stanford. O pioneiro em visualização de dados Alberto Cairo, que trabalhou com Lafuente no El Mundo e agora é professor de visualização de informação na Universidade de Miami, também está envolvido com o Por Causa.
Nesta primeira parte de uma entrevista de duas partes, Lafuente fala sobre seu novo empreendimento e por que escolheu o jornalismo de dados como foco para seu novo projeto.
IJNet: Como o projeto surgiu?
Gumersindo Lafuente: Eu já tinha algumas ideias na minha cabeça. Estava muito interessado no jornalismo com análise de dados, o conceito de falar jornalisticamente com base em critérios decorrentes da análise feita por especialistas, e eu também estava interessado em algo que, infelizmente, é cada vez mais comum na Espanha: questões relacionadas com as causas da pobreza, especialmente aquelas relacionadas a [outros temas maiores, como] agricultura, mineração, uso da terra, sustentabilidade, educação, saúde.
IJNet: Qual é o objetivo por trás do projeto?
GL: No início nós escolhemos esse nicho [de pobreza] que eu acho que é enorme, porque o Por Causa é um projeto muito pequeno, muito humilde, e nós precisamos encontrar financiamento para cada investigação que realizamos. Nós não queremos ter custos fixos ou uma equipe fixa, mas equipes de especialistas, pesquisadores e jornalistas ad hoc para cada projeto.
E sempre deixamos claro que o Por Causa não é uma agência de notícias, não é um jornal, não é uma revista. O Por Causa é um site que vai tentar trabalhar com a mídia, vai tentar ajudar a mídia a fazer mais projetos demorados que talvez não possam seguir. Além disso, nossa intenção é por informação de acesso livre e utilização aberta no nosso site para jornalistas em todo o mundo usar em seu trabalho.
IJNet: O modelo é um pouco como a ProPublica nos Estados Unidos...
GL: Esse é o nosso modelo. Nós gostaríamos de ser como a ProPublica, mesmo que fosse um pouquinho. Tenha em mente que a Espanha é muito menor do que os EUA, com uma situação econômica extremamente difícil agora e, realisticamente, não poderia aspirar a qualquer coisa como [na escala e sucesso da] ProPublica. Mas a ProPublica é uma fonte de inspiração para o Por Causa sem dúvida.
IJNet: A primeira investigação já foi publicada recentemente.
GL: Sim, [apenas algumas semanas atrás]. Na verdade, é o início de uma investigação. Nós trabalhamos em um banco de dados do governo que mostrou como o governo espanhol havia investido recursos na luta contra a pobreza global desde 1992. Analisamos os dados e, com base nessas tabelas e uma análise inicial, vamos publicar diferentes enfoques.
( ... ) Nesta pesquisa publicamos informações sobre como esses recursos foram enviados para muitos países da África e América Latina, por exemplo, Bolívia, El Salvador, Nicarágua, Honduras. Jornalistas destes países podem dar uma olhada nos dados e investigar aonde esse dinheiro tem ido, já que o banco de dados inclui o montante de fundos, os anos, os temas e as organizações que receberam o dinheiro para fazer trabalhos nesses países.
IJNet: Então a ideia é que o site também vai funcionar como um banco de dados...
GL: Sim, a ideia é, com o tempo, começar a construir um banco de dados relacionado a estes temas. Estamos agora tentando encontrar financiamento para fazer uma pesquisa sobre a pobreza infantil e os riscos da exclusão social na Espanha. Essa questão da pobreza infantil na Espanha não foi estudada até agora, porque não era um problema que tínhamos há 30 anos, ou pelo menos não era um problema significativo ou um problema crescente [como é agora].
Havia sempre algumas áreas problemáticas, mas era uma minoria e estavam diminuindo. Mas agora, devido à crise econômica, que já dura há muitos anos, estamos em seu sexto ano, estamos começando a ver os efeitos do elevado nível de desemprego, que atualmente ultrapassa 26 por cento da população ativa e mais de 50 por cento entre os jovens. Estamos começando a ver o aparecimento da pobreza infantil em novas áreas.
IJNet : O senhor mencionou no início desta entrevista que estava muito interessado em fazer jornalismo de dados. Por quê?
GL: É uma outra parte importante do projeto. Infelizmente, na Espanha, e apesar de mais de 30 anos de democracia depois da ditadura de Francisco Franco, os nossos sucessivos governos, independentemente de sua ideologia, não foram capazes de aprovar uma lei de transparência no Parlamento.
Só agora estamos prestes a aprovar uma lei que é bastante deficiente, mas em poucos meses, será passada e teremos pela primeira vez na história da democracia espanhola uma lei deste tipo.
Ambos jornalistas profissionais e cidadãos têm que ser treinados para usar essas leis. Devemos exigir que o Estado, repartições públicas e governos locais forneçam dados que, por lei, devem ser públicos, e também fornecer no melhor formato usável possível.
Porque pensamos que, tendo esses dados disponíveis e fazendo uma ampla utilização das leis de transparência, o jornalismo pode acessar uma série de informações que normalmente seriam negadas, e essa informação pode controlar melhor o trabalho dos funcionários públicos.
O que aconteceu na Espanha até agora? O jornalismo é feito quase exclusivamente de vazamentos e fontes [humanas] que, em muitos casos ou na maioria dos casos, eram partes interessadas. Esse tipo de jornalismo, que, claro, é válido e vai sobreviver, pode ser muito mais forte e muito mais independente se também é sustentado por dados.
Se pudermos aprender a gerenciar os dados, se perseverarmos em pressionar o governo para tornar os dados disponíveis para o público, teremos um governo melhor e uma sociedade melhor.
Maite Fernández é a editora-chefe da IJNet. Ela fala espanhol e inglês e tem mestrado em jornalismo multimídia pela Universidade de Maryland.
Foto sob licença CC no Flickr via José Carlos Cortizo Pérez