Pesquisa lança luz sobre impacto da pandemia no fazer jornalístico

por Marina Monzillo
Apr 30, 2021 em Reportagem sobre COVID-19
Mulher com uma mão no computador e a outra sobre um bebê

Em parceria com a nossa organização-matriz, o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, em inglês), a IJNet está conectando jornalistas com especialistas em saúde e líderes de redação por meio de uma série de seminários online sobre COVID-19. A série faz parte do Fórum de Reportagem sobre a Crise Global de Saúde do ICFJ.

Este artigo é parte de nossa cobertura online sobre COVID-19. Para ver mais recursos, clique aqui. 


Mais de um ano de pandemia e como anda a vida de jornalistas no home office? Aqui vai um resumo rápido: a jornada de trabalho aumentou, falta  estrutura adequada e acumula-se papéis dentro de casa, somados ao medo de se contaminar e a incerteza de conseguir manter a renda familiar. Como consequência, jornalistas revelam cansaço, desgaste e uma produção mental incessantes.

Os dados estão entre os principais achados do estudo “Como trabalham os comunicadores na pandemia da COVID-19?”, coordenado pela professora livre docente Roseli Figaro, da Universidade de São Paulo, à frente do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPTC), da Escola de Comunicação e Artes (ECA). Ela foi a convidada do webinar “Entre louças e textos: como trabalham os jornalistas na pandemia”, realizado em 29 de abril, pelo Fórum de Reportagem Sobre a Crise Global de Saúde

 

 

Veja a seguir os principais pontos da conversa.

Reorganização do modo de trabalho 

  • O contexto “de profundas mudanças nos meios de produção” ocorre desde o início do século 21, com os processos de plataformização e digitalização. “A partir dos anos 2010, não existe mais a Rredação como no final dos anos 90”, iniciou Figaro. O profissional de jornalismo passa a ser multitarefas, sem uma divisão clara de funções. De acordo com a pesquisadora, esse quadro é acentuado na pandemia. Pois o jornalista deixa de ir para a rua, de trocar experiências com a equipe, de ver de perto os problemas. “Para ser afetado pelos relatos e narrativas, e dessa maneira, poder relatar aos outros estando diante dos fatos”, refletiu. Assim, há uma precarização do trabalho. E como consequência, o trabalho é barateado. Com rebaixamentos e demissões, o cenário de crise atinge o mercado da comunicação. “Há um exército de mão de obra disponível”, analisou a pesquisadora. E acrescentou: “Ocorre ainda uma mudança geracional, um ‘gap’ entre o (profissional) antigo, que tem dificuldade de se adaptar, e o novo, que não possui outras referências.”
  • O ambiente pessoal, antes dedicado a questões como descanso, proteção e convívio familiar, também é rebaixado. “Como uma (sensação de) desproteção. Fato que causa uma tensão muito maior, porque estamos numa espécie de ‘Big Brother’ durante as 24 horas do dia, onde não temos mais aquele espaço de nos guardar ou reenergizar”, narrou. Outro ponto levantado por meio do estudo é que, dentro de casa, muitos profissionais deixam de ter o equipamento necessário para exercerem adequadamente suas funções. 
  •  Sobre a maneira possível de fazer uma gestão do lar, a estudiosa usou como imagem o depoimento de uma participante do estudo: “Eu não sei mais o que fazer, tenho de trabalhar em um apartamento de 40 metros quadrados e com duas crianças em casa”. Figaro comentou: “Uma mãe que não tem onde colocar os filhos e precisa trabalhar... Isso é um pedido de socorro no meu modo de ver”. Entretanto, como relata outra declaração contida no relatório: “Não é o filho quem atrapalha, mas o trabalho que está fora de lugar”. Figaro elaborou: “Para o capitalista está ótimo... Se você entregar o trabalho em uma jornada de 12 horas, com os filhos dentro de uma jaula, não importa.”

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 Sobretrabalho, cansaço, estresse

  • Diante desse contexto em que o mundo do trabalho é deslocado para o privado, “porque o mundo do trabalho é um espaço social mais aberto”, a pesquisa explicita a sobreposição de papéis e responsabilidades. “Trabalha-se o tempo todo, em ritmo muito mais acelerado… somando-se as questões domésticas, que não são tidas como trabalho – sobretudo por serem relegadas às mulheres –, acontecendo entre uma ligação e outra”, reforçou.

  • Figaro destacou ainda a falta dos momentos necessários para a pausa. “Perde-se o cafezinho, o tempo com os deslocamentos, a mudança de sala. Atende-se um entrevistado ou cliente entre uma mamadeira e a louça na pia. Lembrando que, ao entrar no espaço doméstico, prevalece o discurso como trabalho, sem intervalos para falar ‘sobre’ e ‘no trabalho’”, descreveu. “Esses poros são necessários no entanto. E no tempo da pandemia, foram fechados”. Com a ausência dos espaços psicológicos e físicos, aumenta a sensação de cansaço. No relatório da primeira fase da pesquisa, a palavra que mais aparece, além de “cansaço”, é “medo”. “A questão da incerteza, da insegurança, também é um dado muito relevante para pensar em saúde”, concluiu.  

Como lidar com a incerteza

  • No começo da pandemia, as pessoas falavam muito no depois. ‘Isso vai passar logo’, diziam, com a ideia de estarmos em uma crise global. Havia um negacionismo geral da população e de setores do governo. A tensão, o estresse, a insegurança eram guiados até o momento em que iríamos superar a pandemia. “O brasileiro tem essa capacidade de adaptação impressionante, essa resiliência ao ruim”, afirmou Figaro.  

  • A relação entre espaço público e privado no trabalho vai além do mercado de comunicação. Para o empresário, o barateamento de custos fixos como segurança, limpeza, energia elétrica, entre outros, fizeram com que imóveis comerciais tenham sido entregues; e o setor imobiliário residencial continue em crescimento. “É claro que essa otimização será buscada como permanente”, sugeriu Figaro. Motivada também pelo aumento da produtividade. Ela afirmou ainda que “se estivéssemos em uma democracia real, poderíamos pensar em boas formas de viver e morar”.  

  • Para a docente, o ser humano reinventa o trabalho o tempo inteiro. “Porque cada momento é inédito, sempre único. É na própria atividade do trabalho que reinventamos o nosso modo de trabalhar. O trabalho institui o ser humano. E isso é bonito. Essa potência cria as inovações, as novas técnicas, o aperfeiçoamento”, defendeu, trazendo o conceito para o fazer de uma reportagem. “Quando o repórter anota, grava, encontra um olhar, um ângulo, ele adensa sua expertise. E se reinventa. O ser humano é capaz, desde que tenha as condições necessárias.”. Por outro lado, “o jornalista pensa que não é um trabalhador, uma herança do pensamento escravocrata, uma ilusão iluminista de que um pensador não trabalha”. A observação aponta para o risco da desvalorização do profissional, hoje exigido de saber produzir em múltiplas plataformas e formatos como texto, foto e vídeo.  

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A questão da plataformização da informação

  • Outro tópico discutido na conversa tratou do aparato tecnológico, detentor de todos os dados de informação. “Hoje a informação é mais de 50% na composição do capital. Esta entrevista, por exemplo, vai para seu canal e também fica no Zoom, muito além da lógica do entregador. O jornalista escreve uma palavra ou emite um som, e está contribuindo para o capitalista. Por isso o valor dessas empresas aumentou 25% no último ano”, afirmou. “A legislação também passa a ser a da empresa, muitas vezes sediada fora do país, os direitos trabalhistas se fragilizam, tudo se destrói”, disse, reiterando a importância de uma regulamentação.

  •  Para o profissional de jornalismo, a lógica é a mesma. A produção de informação gera um conjunto de outros dados de monetização pelo qual ele não é pago. “A plataformização do conteúdo institui uma racionalidade da organização do trabalho em benefício dela. O que é o AirBnB senão uma plataforma de hospedagem que, além do percentual sobre a locação, lucra com os dados...”, ela comparou. A pesquisadora ressaltou que a Lei de Dados é, portanto, uma discussão fundamental. E que pode estar a favor dos jornalistas enquanto trabalhadores.

  • A pesquisa demonstrou que o WhatsApp é um dos recursos mais utilizados pelos jornalistas para entrevistas durante a pandemia. “Um exemplo de que a informação está depositada em algum lugar em que o profissional não tem consciência ou poder de preservar”, ilustrou Figaro. Trazendo questões fundadoras da profissão, como o direito à preservação da identidade da fonte. “Mediados pela lógica dos aparelhos, não temos essa privacidade”, ela comentou. “Além da vigilância sobre nosso trabalho”, finalizou. 

Existe qualidade possível no home office?

  • A estudiosa explicou que as situações são muito diversas. Ela retomou o relato da profissional que vive em 40 metros quadrados com duas crianças. “Como amenizar? Por meio de políticas públicas para suprir as necessidades básicas desta família, para que esta mãe possa se dedicar mais ao lar… Ou seja, o trabalho dentro de casa não se resolve no âmbito individual, mas coletivo”, defendeu. Ela trouxe outro depoimento da pesquisa: “De dia sou mãe e esposa. De noite eu trabalho”. É preciso cobrar políticas públicas de suporte, sair do conformismo à vontade política. Temos recursos, sabedoria e estrutura para isso.

  • Figaro afirmou que o momento de buscar soluções é agora, não depois. “A pandemia esticou todas as situações ao limite. No pós-pandemia as empresas não vão querer diminuir seus ganhos”, disse, embora tenha apontado questões difíceis, a pesquisadora do trabalho encerrou com uma mensagem esperançosa. “É no mundo do trabalho onde vamos resolver os nossos problemas, porque ele traz esse potencial de transformação humana e daquilo que queremos alcançar… éticas de solidariedade e compartilhamento”, disse. “Temos de encontrar as soluções coletivamente.” 


Marina Monzillo é jornalista freelancer com 20 anos de experiência em diversas áreas, como cultura, turismo, saúde, educação e negócios.

Imagem sob licença CC no Unsplash por Standsome Worklifestyle