Jornal A Sirene: resistência para não esquecer uma tragédia socioambiental

Oct 31, 2021 em Jornalismo colaborativo
Moradores lendo A Sirene

O desejo de criar um veículo para dar voz às pessoas atingidas pelo rompimento de uma barragem, que resultou num enorme crime socioambiental no Brasil, foi a alavanca para a criação do Jornal A Sirene. O nome é uma referência direta à sirene que deveria ter tocado quando a barragem se rompeu – erro que pode ter custado a vida das 19 vítimas do crime.

Era pouco mais de 15:30 quando os moradores de Bento Rodrigues, distrito de Mariana, no estado de Minas Gerais, souberam que um mar de lama descia em direção às suas casas, no dia 5 de novembro de 2015. Eles correram para o ponto mais alto da comunidade deixando tudo para trás. Em poucos minutos, os 62 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro da barragem de Fundão, das mineradoras Samarco/Vale/BHP, avançaram sem piedade sobre escola, hospital, igreja, casas e quintais. Tinha início a luta de milhares de pessoas por reparação, informação e memória.

 

Destruição da cidade de Bento Gonçalves
O distrito de Bento Rodrigues (MG) ficou soterrado após o rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarca-Vale-BHP. (Foto: Lucas Bois)

 

Durante as primeiras semanas após o rompimento, os holofotes da imprensa se voltaram para o caso. Não demorou para que as pessoas atingidas questionassem a atuação dos jornalistas. “No princípio todo mundo tinha medo das mineradoras, empresas muito grandes, poderosas. Às vezes você dava uma entrevista e eles faziam aquela maquiagem, escondiam alguma coisa”, lembra Simone Silva, moradora de Gesteira, distrito de Barra Longa.

Feito pelos atingidos, para os atingidos

A Sirene, impresso em formato A3 e com tiragem mensal de 2000 exemplares, começou a ser distribuído gratuitamente em fevereiro de 2016, nas cidades e distritos de Mariana e Barra Longa. O veículo foi criado com o apoio de profissionais de comunicação, o coletivo Um Minuto de Sirene e professores ligados à Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

“No primeiro ano, o princípio estava construído no campo da memória. No segundo ano, a gente também tentou abarcar outros eixos”, explica o jornalista Rafael Drumond, responsável pela publicação. “Eu orientei o fazer comunicativo para a articulação política, para a construção de uma rede articulada no território, não só entre os atingidos, mas também entre os grupos de apoio”. Segundo ele, a publicação acompanhou a evolução da própria luta por reparação, sem perder de vista a perspectiva de uma comunicação popular, para que as pessoas atingidas colocassem seus interesses em cena.

 

Barragem rompida
Morador de Barra Longa (MG) observa a lama que tomou conta do quintal de sua casa. (Foto: Lucas Bois)

 

“É o jornal dos atingidos, feito pelos atingidos, para os atingidos. E ele não aparece só no 5 de novembro. Foi o primeiro que teve coragem de falar sobre os problemas de saúde da minha filha. Ele é resistência”, afirma Silva, que atua no veículo como repórter desde 2016.

Sérgio Papagaio aprendeu na prática que para saber o que está acontecendo é necessário ir até as pessoas, conhecer suas comunidades, ouvir o que querem dizer. Morador de Barra Longa, além de garimpeiro, ele atua no veículo desde o início. “A gente que é da região procura escrever de forma regional e acessível. Sempre buscando usar uma linguagem mais próxima do povo”. Atualmente, Papagaio é um dos editores-chefe do Jornal, ao lado de Genival Pascoal, também um dos atingidos pela tragédia.

"Quando eles abrem o jornal a Sirene, eles falam 'olha o Geraldo, como ele tá bonito nessa foto', 'olha a dona Nhanhá, a netinha dela, Francisca, tá aqui também'. Eles se sentem pertencentes ao jornal porque os personagens não são fictícios”, diz Papagaio. “O leitor acaba descobrindo que Seu Geraldo, o vizinho, teve um direito reconhecido e que ele também tem esse direito e começa a acreditar. A Sirene faz com que o atingido entenda os seus direitos nesse processo”.

O jornal não tem a pretensão de ser isento. Essa escolha faz com que seus jornalistas tomem atitudes pouco usuais em comparação com outros veículos como, por exemplo, não entrevistar representantes da Samarco/Vale/BHP ou da Fundação Renova (entidade criada pelas mineradoras para “reparar” os danos). Outra postura diferente diz respeito ao “furo” jornalístico. “Recebemos informações exclusivas antes da grande mídia, mas, muitas vezes, deixamos o furo de lado para preservar os atingidos”, afirma Joice Valverde, uma das jornalistas da equipe.

 

Lama na escola
Antiga escola de Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), atingida pela lama de rejeitos, MG. Foto: Lucas Bois

 

Desafios para continuar existindo

A reparação pela tragédia, que completa 6 anos, está longe de acontecer. A vegetação e os cursos d’água seguem contaminados por rejeito, as famílias estão afastadas das suas comunidades e os reassentamentos coletivos estão pendentes. “Algumas pautas despertam um misto de revolta, impotência e angústia”, afirma Valverde, “O pior é saber que sentir isso, sendo de fora, nem se compara com o sentimento das pessoas atingidas. Mas ver que elas continuam fortes e persistentes é muito inspirador pra mim”.

Com a chegada da pandemia da Covid-19, a equipe precisou parar de imprimir e entregar os jornais para evitar o risco de contágio. O trabalho passou a ser remoto. Com mais de 60 publicações, o Jornal A Sirene vive um difícil momento de falta de recursos. “A Sirene foi dando voz, foi transformando o anseio das pessoas em notícias. A minha grande angústia é a possibilidade do jornal acabar”, afirma Papagaio. Diante disso, a equipe lançou um financiamento coletivo.

“Que a sociedade descruze o braço, coloque a mão no bolso, contribua. As mineradoras e os acionistas deveriam pegar uma migalha do que recebem, centavos dos royalties, e ajudar a financiar o jornal, que é o grito dos atingidos”, desabafa Silva.


Foto capa: Lucas de Godoy