É difícil escrever em primeira pessoa quando estou falando do Nonada Jornalismo, porque sempre é um trabalho coletivo, inclusive, “coletividade” é um dos nossos valores. Mas vou me permitir aqui neste texto para explanar sobre um projeto que lançamos recentemente e que está tendo um ótimo retorno do nosso público: o Glossário do Pensamento Contracolonial Brasileiro.
Quando você conhece seus objetivos e sua missão no jornalismo, fica muito mais fácil pensar em pautas e projetos. No nosso caso, a decolonialidade também é um dos valores e ela está atravessada em nosso trabalho: procuramos sempre trazer olhares diversificados sobre o Brasil com foco em questões de grupos historicamente minorizados, contando as suas histórias, ritos e expressões intelectuais e artísticas.
Perspectiva do sul global
Com isso, em 2023 lançamos a Rede Veredas, que teve apoio do programa Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ. Trata-se de uma rede de artistas e educadores interessados em uma perspectiva centrada no sul global, com interseccionalidade em questões de gênero, raciais, geográficas e outras questões sociais e identitárias.
No primeiro momento, criamos a plataforma que conecta esse público e logo já começamos a pensar em ideias para dar continuidade ao projeto. Foi quando surgiu a proposta do glossário.
O que tem no glossário
Pensado para ser uma espécie de porta de entrada de conceitos importantes para o pensamento intelectual brasileiro, o glossário é destinado principalmente para educadores, estudantes de diversas áreas, profissionais do terceiro setor, jornalistas e demais pessoas que desejam compreender as ideias que ajudam a explicar estruturas históricas e socioculturais do país. E, neste sentido, a publicação também se insere em um campo maior que pesquisa a descolonização com consistência há muito tempo.
Para jornalistas, acredito que o glossário possa servir como ferramenta, ajudando-os a contextualizar conceitos complexos. Ao mesmo tempo, criando uma ponte para novos olhares e referências que os ajudem a enriquecer suas abordagens e fontes.
Os desafios já começaram na hora de selecionar os termos que entrariam no glossário. Por ser um campo vasto, teríamos que reduzir, pelo menos nessa primeira edição, a quantidade. Pela expertise do Nonada em diversas matérias realizadas ao longo da nossa trajetória e que trataram de alguns desses conceitos e também pela curiosidade em aprofundar certos temas, acabamos fechando em 22. Apostamos nesse momento em trazer as ideias de intelectuais clássicos do Brasil, como Abdias Nascimento, Lélia González e Paulo Freire, mas também de contemporâneos como Sueli Carneiro, Leda Maria Martins e Luiz Rufino.
Decolonialidade, descolonização e contra colonialidade
A complexidade já começa também em delimitar os conceitos de decolonialidade, descolonização e contra colonialidade, que podem confundir muitos leitores. Os três estão presentes na publicação. Há também uma entrevista com o professor o professor do Departamento de Sociologia da UFRGS José Carlos Gomes dos Anjos que ajuda a elucidar essa questão.
Aliás, além da explicação dos termos, há também dicas culturais e artistas para conhecer que, de alguma forma, trabalham com os devidos conceitos. É uma forma de trazer um olhar também para os processos artísticos que trabalhadores da cultura levam ao mundo, e mostrar que esses conceitos são todos vivos, isto é, fazem parte do nosso cotidiano. São formas de pensar e de ver o mundo.
A equipe - formada por uma coordenadora e dois redatores - mergulhou em artigos acadêmicos, citados nas referências bibliográficas, e estudou os conceitos para então explicá-los com uma linguagem didática e acessível. O campo da intelectualidade contemporânea no Brasil, especialmente a afro-indígena, é dinâmico, portanto nossa ideia é que a publicação ganhe atualizações no futuro.
Como escrevemos no texto de introdução do glossário, a intenção é mostrar que o conhecimento não precisa ser construído apenas no sentido da definição racional, cartesiana, mas também se aproximar do valor da experiência corporal. “Artistas, pesquisadores, mestres e mestras de cultura referências do Glossário fazem, a partir de suas pesquisas, convites. Que a gente possa mergulhar em suas propostas, deixar que o mundo se parta e se reparta”, escrevemos.
Um exemplo: a oralitude
Conceito proposto em contraposição à escrita como meio oficial e que detém a capacidade de armazenar e transmitir saberes, a oralitura é uma ode à cultura da oralidade. Para a professora, poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, a oralitura diz sobre a produção e disseminação do conhecimento a partir de manifestações performáticas culturais, tendo a mesma força da palavra escrita.
No exemplo de “oralitude”, nossa dica foi a “Conversa na Rede”, que integra o ciclo de estudos nomeado “Selvagem”, de Ailton Krenak. As culturas indígenas e afro-brasileiras ensinam a “oralitura” como fundamento para a construção do saber.
Quem transmite conhecimento através do corpo e da voz evoca um traço residual, que inscreve no tempo saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos. Segundo Leda Maria, é importante ressaltar nas tradições performáticas a sua natureza meta constitutiva, "nas quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e modifica dinamicamente".
Conheça mais termos baixando de forma gratuita no Nonada Jornalismo.
Foto: Capa do Glossário