Retratistas do Morro: o resgate de uma memória não contada

28 juil 2024 dans Jornalismo colaborativo
Festa de aniversário

O artista plástico Guilherme Cunha encontrou um tesouro ao ver algumas das fotos que Ana Oliveira guardava. As imagens, preservadas em monóculos, traziam cenas cotidianas de um passado não muito distante do Aglomerado da Serra, um dos maiores conjuntos de favelas do Brasil, localizado na região Centro-Sul de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.

“Eu nunca tinha visto nada nem remotamente parecido com aquela imagem que a Dona Ana me mostrou”, conta Cunha sobre uma foto que mostrava um grupo de homens jogando sinuca em um bar. Aquela imagem abalava todo um modelo de percepção estética sobre as comunidades periféricas. “O que poderia ser a história do Brasil se aquilo fosse levado em conta?”, questiona.

Foto antiga
Acervo Dona Ana Martins: "Zé Teófilo, Giovani, Joaquim e amigos no barzinho aqui de casa", Década de 1980

A proposta para resgatar imagens

A ideia do projeto veio como uma fagulha. “Na hora que eu levantei aquele monóculo eu tive uma revelação, veio tudo na minha cabeça", diz Cunha. "Então eu perguntei pra Dona Ana: a senhora topa começar um projeto com a gente? Vai chamar Retratistas do Morro.” A proposta? Resgatar as imagens produzidas por fotógrafos do Aglomerado da Serra desde a década de 1960 até os dias atuais.

Por indicação da Dona Ana, a primeira pessoa que Cunha procurou foi o Seu Adão, que hoje trabalha como serralheiro. O encontro aconteceu naquele mesmo dia, mas com um desfecho inesperado: ele tinha jogado fora todos os seus negativos na semana anterior. Seu Adão sugeriu procurar João Mendes, outro fotógrafo da comunidade. Foi quando o projeto começou a engrenar.

Acervo da vida cotidiana

João Mendes é proprietário de uma pequena loja de fotografia em um bairro vizinho ao Aglomerado da Serra. Quem vê toda história marcada nos retratos e nas câmeras antigas que preenchem as prateleiras da sua loja, não imagina que ele se tornou assistente de fotografia enquanto trabalhava vendendo picolés em Ipatinga, interior de Minas Gerais. Ele tinha apenas 14 anos quando começou a registrar eventos familiares, retratos na rua e criminosos detidos pela polícia.

Aos 18 anos, se mudou para tentar a vida em Belo Horizonte. “Em 68 eu cheguei aqui e fazia todo tipo de trabalho: aniversário, batizado, casamento. Fotografava na casa de um, na casa de outro. Andei essa Serra igual cachorro sem dono”, conta. Após quatro anos decidiu abrir seu próprio negócio, o Foto Mendes.

Foi lá que Afonso Pimenta, que também compõe o Retratistas do Morro, trabalhou profissionalmente como fotógrafo pela primeira vez. Pimenta nasceu em uma fazenda perto de São Pedro do Suaçuí, no interior de Minas Gerais, e se mudou para Belo Horizonte aos 9 anos de idade. “Um dia, um cara que estudava comigo me mostrou uma Kodak Instamatic 11. Ele falou: ‘Com essa máquina todo fotógrafo fica rico, compra carro, namora mulheres bonitas’. Eu pensei ‘acho que isso dá certo pra mim’”.

Foto antiga
Foto de Afonso Pimenta, "Sobrinho do Pico com as caixas de som", 1992

 

Pimenta trabalhou em vários lugares ao longo dos anos, até receber um convite inesperado: “O Misael [Avelino dos Santos] pediu pra eu ir fotografar o aniversário do Som”. Som era o nome do baile de black music realizado na sede do Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica (PUC). A partir daí ele passou a ser chamado para fotografar em diversos lugares e eventos. “Eu já peguei 4 casamentos por dia”, lembra.

Livro do projeto

Para o livro, lançado em março de 2024, foi realizado um financiamento coletivo. Na publicação são apresentadas quatro biografias em primeira pessoa – as histórias de João Mendes, Afonso Pimenta, Misael Avelino e Ana Oliveira – e centenas de fotos do Aglomerado da Serra e seus moradores.

Selecionar todo o material não foi tarefa fácil: afinal, os acervos de João e Afonso juntos somam 250 mil imagens. A primeira etapa foi identificar os grupos de assuntos, como casamentos, batizados e aniversários. Em seguida foi iniciado o restauro, começando pelas imagens que tinham a melhor possibilidade de serem recuperadas.

Por trás de cada imagem publicada, houve um trabalho cuidadoso de identificação das pessoas que aparecem nela. “Agora eu posso curtir o trabalho que fiz há 50 anos. Se disserem que sou mentiroso, eu respondo ‘sou mentiroso não, pois posso provar’”, afirma Mendes.

Foto antiga
Foto de João Mendes, "Gladston Albino da Silva (Preto), Marlene, Rute e família", década de 70

Memória preservada e premiada

O Retratistas do Morro quer ajudar a mudar a perspectiva sobre a história nacional. Cunha é categórico. “O lastro simbólico é construído a partir da percepção sobre o que precisa ser preservado para manter a memória e os valores da soberania", explica ele. "Neste lastro não existe nenhuma imagem como essas. A história que está preservada não é a história da maioria da população brasileira. Por isso que um dos eixos de trabalho do Retratistas é o reposicionamento do lastro simbólico.”

O trabalho tem vingado na medida em que o Retratistas do Morro consegue aprovação em fundos, editais e premiações. Desde que começou, o projeto já realizou exposições em dezenas de cidades no Brasil e no mundo, incluindo a Galeria Polygon, em Vancouver, no Canadá. Também ganhou o 30º Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, a maior premiação brasileira no campo do Patrimônio Cultural, e o Prêmio PIPA 2023, o prêmio de maior destaque nas Artes Visuais do país.


Foto capa: de Afonso Pimenta, "Aniversário de 6 anos da Renatinha", 1987