Livro analisa discurso midiático sobre polícia pacificadora do Rio de Janeiro

4 juil 2022 dans Jornalismo investigativo
Carros de polícia

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP´s) foram o projeto mais ambicioso do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, na área de Segurança Pública, quando chefiou o poder executivo fluminense entre 2007 e 2014. O programa visou a proteção de megaeventos que viriam transformar o cotidiano da cidade do Rio, entre eles a Copa de Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio, em 2016. Cerca de 1,5 milhão de pessoas de 264 territórios periféricos foram direta ou indiretamente afetadas por essa política, uma novidade estratégica que tentou misturar inclusão social, prevenção da violência e combate ao tráfico de drogas apostando na proximidade das forças de segurança com as populações locais de favelas. A “boa” repercussão foi tanta que o ex-presidente Lula afirmou, na época, que as UPP´s deveriam ser nacionalizadas.

Ao observar os anos dourados das UPP´s e a sua performance midiática na produção de narrativas jornalísticas, em especial as do jornal O Globo, o jornalista e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, Pedro Barreto, decidiu escrever um livro. O “Notícias da Pacificação, outro olhar possível sobre uma realidade em conflito” é o resultado de seis anos de pesquisa. Leia a entrevista com o autor.

1. Causou alguma surpresa a forma como os jornais apresentaram a instalação das UPP´s no seu início?

Minha escolha por este tema se deu quando O Globo, no final de novembro de 2008, já decretava “Santa Marta (comunidade do bairro de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro) livre dos bandidos”. Com chamada de capa e ampla cobertura sobre a ocupação policial naquela região. No dia anterior, a reportagem principal da editoria “Rio” do jornal foi sobre um tiroteio em uma favela que teria afetado o trânsito em uma grande via da cidade. Lá no pé da página, uma pequena nota dizia que moradores haviam organizado um protesto contra a ocupação policial em uma creche no Santa Marta. Ali ficaria sediada a UPP. Aquilo me chamou a atenção e me levou a iniciar a pesquisa que está no livro.

2. De que forma, durante esse período, O Globo foi porta-voz do medo da classe média e das elites em relação às favelas e como esse sentimento se transforma em deliberação jornalística sobre o poder público?

No início da pesquisa, procurei investigar a fundo justamente a questão do medo. Entendo que esse tema é central para a legitimação de políticas de segurança pública. O livro “O medo na cidade do Rio de Janeiro”, da Vera Malagutti Batista, foi determinante nesse sentido. Ela nos mostra que o medo é socialmente construído neste país, sobretudo, a partir da “abolição” (entre aspas por todo o debate do movimento negro que apropriadamente questiona as condições dessa abolição) formal da escravidão. O medo que as elites brancas sentiam do enorme contingente de africanos em condição de escravidão motivou diversas políticas de embranquecimento da população. E a segurança pública, evidentemente, está inserida nisso. Os meios de comunicação hegemônicos atuam na legitimação discursiva disso, ao apresentar frequentemente o jovem negro - morador das favelas e periferias - como o inimigo a ser temido, excluído e que deve ser preso ou morto.

3. De acordo com a sua pesquisa para o livro, como ficou a imagem das favelas a partir da existência das UPPs?

O que ocorre é que, majoritariamente, as matérias de O Globo sobre as ocupações policiais nas favelas da cidade apresentam as UPPs como uma “oportunidade” de livrar as favelas dos bandidos e de oferecer condições aos moradores de terem uma vida melhor. De acordo com essa narrativa, esses seriam males menores, se comparados ao suposto “mundo maravilhoso da pacificação”. A transformação das favelas da zona sul em locais de entretenimento para a classe média e para turistas estrangeiros atende à lógica da cidade como commodity, que era o objetivo dos megaeventos esportivos internacionais da década passada. Para isso, era importante que essas favelas fossem “pacificadas” e transformadas em locais exóticos, descolados. Mas o discurso oficial era de que a UPP tinha como objetivo “integrar a favela e o asfalto”. Mas integrar de que jeito? Com o morador da favela trabalhando como entregador precarizado, ajudante de pedreiro, motorista de aplicativo, enquanto o rico subia o morro pra se divertir? E agora, como é o nome da “nova” política de segurança pública do atual governador? “Cidade integrada”! E com propaganda no site e nas redes sociais de O Globo sobre ela.

4. Qual é a sua análise sobre a produção dos textos e imagens jornalísticas no campo da segurança pública?

Eu me guiei pela abordagem sociológica presente no livro “Os quadros da experiência social”, do Goffman, herdeiro do interacionismo simbólico. Tentando resumir, ele conceitua a “frame analysis”, que seriam os quadros, por meio dos quais enxergaríamos o mundo que nos cerca. Considerei interessante trazer essa abordagem no livro para descrever como os textos e as imagens jornalísticas são produzidos. Ao enquadrarmos uma realidade, inevitavelmente, deixamos todo o resto de fora. E a construção desse quadro é feita por aquele que opera essa “câmera”, a partir de sua formação pessoal, profissional, acadêmica, sua classe, cor, sexo, orientação sexual etc. Apesar disso, posso dizer que, hoje, o discurso da mídia hegemônica precisa negociar com mais atores sociais, pois há mais câmeras nas ruas; as redes sociais também exercem um papel de desestabilizar um certo discurso único, como poderia ocorrer algumas décadas atrás. Mas eu sou cético em relação a isso também. Haja vista a concentração de poder econômico e político nessas plataformas virtuais, as tais big techs, que impedem que aquele ideal de democratização da internet, de que falaríamos “de todos para todos”, de 20 anos atrás, não tenha se consumado.  

5. Se as redações fossem racialmente mais diversas haveria uma quebra desse percurso no que tange a cobertura jornalística sobre segurança pública?

No livro, eu utilizo textos do Mauro Wolf e do José Arbex Jr., que mostram como os critérios de noticiabilidade são construídos e transmitidos dos jornalistas mais experientes aos mais jovens, como que “por osmose”. Quer dizer, muitos desses critérios são mais subjetivos do que objetivos. “Isso é notícia”, ou “isso não é notícia” passa a ser aprendido meio que por instinto após alguns meses de convívio no ambiente da redação. É uma necessidade de adaptação naquele meio ali aprender isso. Claro que há embates. E eu vejo que muita coisa tem mudado. O debate étnico-racial, o combate à homofobia, por exemplo, hoje estão muito mais presentes e isso é muito bom, evidentemente. Penso que isso se deva à maior diversidade nas redações, mas também a essa negociação com as redes sociais, como disse na resposta anterior. Mas isso tem um limite. E eu entendo que esse limite está na estrutura. O questionamento sobre o capitalismo e seus alicerces não entra em discussão no Jornal Nacional, ou no Fantástico. É uma cláusula pétrea, digamos assim, das Organizações Globo e dos demais meios de comunicação hegemônicos. Está inclusive nos seus princípios editoriais que defender a livre iniciativa e combater qualquer forma de regulação dos meios de comunicação é parte da missão da empresa. 

6. Você acha que por fazer oposição ao bolsonarismo nos dias atuais, O Globo amenizou seus processos discursivos em relação a criminalização da pobreza?

Eu não sei até que ponto vai essa oposição. Há ainda muitos dedos quando se critica a política econômica do Guedes, por exemplo. Não houve e não há muitas vozes na mídia hegemônica que falem contra as reformas trabalhista, previdenciária e administrativa, contra a EC do teto de gastos, que aprofundou ainda mais o sub-financiamento da Educação e da Saúde públicas no país, por exemplo. Também há muito medo em falar nas inúmeras ameaças de golpe de estado proferidas por políticos e militares ligados ao governo federal. Há os colunistas mais “ousados”, digamos, mas mesmo esses falam de uma forma menos direta e assertiva do que deveriam, em minha opinião. 


Foto: william f. santos no Unsplash

 

 

 


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