O Coletivoz, sarau mais antigo de poesia marginal de periferia de Minas Gerais, completou 13 anos em setembro deste ano. Ele resiste à pandemia com saraus virtuais pelo Instagram. O espaço funciona como um centro cultural para a periferia e região metropolitana de Belo Horizonte, no qual os poetas podem recitar poesia e compartilhar vivências. A ideia principal é prestigiar e espalhar a poesia que vem da periferia, muitas vezes negligenciada pelas grandes editoras que só publicam determinados perfis de autores - em sua maioria homens brancos e de classe média.
Essa constatação de que o espaço literário não é tão plural quanto deveria vem de um levantamento realizado sob a coordenação da jornalista e pesquisadora Regina Dalcastagnè. Por meio do grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), foram analisadas as publicações das maiores editoras do país. Uma pesquisa por 689 romances no período de 1965 a 1979 e entre 1990 a 2014.
Dalcastagnè reuniu os resultados da pesquisa num artigo chamado: “Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas décadas: alterações e continuidades". A pesquisadora detalha o perfil do escritor brasileiro: a área é dominada por homens (71,2%), brancos, pertos da meia-idade, com diploma superior e que moram no eixo Rio de Janeiro/ São Paulo (70%). A maioria dos escritores são heterossexuais e de classe média e seus personagens e narradores em geral são autorreferentes, resultando em uma literatura de temáticas repetitivas, que legitima a produção literária realizada por um segmento restrito e que tende a reproduzir as exclusões da sociedade brasileira.
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Dalcastagnè faz um paralelo a respeito da literatura que muito se assemelha ao papel do jornalismo. Ela afirma que a literatura não tem a pretensão de mudar o quadro social de exclusão e de violência. "Mas a literatura tem, também, responsabilidade ética diante do mundo. Ela pode simplesmente reafirmar preconceitos, legitimando-os, ou pode questioná-los, trazer novos modos de pensar nossas relações com o outro”, diz a jornalista e pesquisadora.
"O levantamento foi realizado após anos de trabalho direto com a literatura brasileira contemporânea, tanto no jornalismo cultural, na sala de aula e nas pesquisas. Portanto, a ideia de que a desigualdade social no país marcava também sua produção literária era a hipótese principal do trabalho", explica Dalgastagnè. "No entanto, o baixíssimo número de autoras e autores negros, bem como a quase ausência de personagens negras em posição de protagonistas e narradores ainda surpreendeu toda a equipe”.
Regina destaca a proliferação de pequenas editoras, saraus, coletivos negros, indígenas e organizações de mulheres e de autores de periferias, que confrontam a cena literária oficial. “Não quero romantizar essa movimentação, nem ignorar o fato de que ela ainda permanece às margens. Muitos desses escritores e escritoras querem, e merecem, maior visibilidade, para além do seu próprio circuito. Mas este é um espaço de fecundidade criativa e de resistência”, afirma.
É justamente na contramão das grandes editoras, que movimentos como o Coletivoz de Belo Horizonte encontram espaço com promoção de saraus e slams (batalhas de poesia falada) que contemplam outros olhares e contextos socioculturais, retratando o seu cotidiano e suas vivências. Uma literatura produzida pela periferia e para a periferia, que traz pertencimento ao dialogar com o cotidiano do seu público e que, além de dizer sobre a realidade dos poetas, dos seus amores e alegrias, denuncia o racismo, as violências e a narrativa hegemônica midiática que estigmatiza corpos pretos e periféricos. “Os poetas usam nos versos a linguagem da periferia, falando do que vive a periferia”, afirma Dione Machado, um dos articuladores do movimento.
“São outros corpos e vozes marginalizados socioeconomicamente e à margem desse mercado cultural da cidade, que estão fora dos sistemas de ensino das escolas, que produzem outras presenças nas periferias", afirma Dudu Luiz, articulador do grupo. "Produzimos outros contrapontos de outras literaturas que as escolas, as universidades e a instância da imprensa e da mídia não reverberam, ficam sempre reverberando as tradições literárias, os cânones, que é muito elitista, branco, masculinizado”.
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Para o articulador Rogério Coelho, o Coletivoz abriu um caminho. "Ele inaugurou em BH uma possibilidade da literatura marginal de saraus de periferia. A partir do Coletivoz abriu-se uma chancela para que outros coletivos sintam a necessidade de nomear seus saraus, a partir do seu espaço geográfico na periferia”. Os saraus Manas, Nosso Sarau, Lanternas e Vira-Lata são citados por Dione Machado como exemplo dessa movimentação.
Thamara Selva, uma das articuladoras do coletivo, afirma que o movimento dos saraus de poesia marginal e periférica está num papel descentralizador da literatura. "É tirar a literatura desse lugar imposto academicamente para trazer ela mais perto das nossas dialéticas, porque a periferia tem as suas dialéticas que devem ser respeitadas”.
Além do microfone aberto para a declamação de poesia, os saraus do Coletivoz já contaram com exposições de pinturas, grafites, fotografias, apresentações musicais de rap e outros estilos e encenações teatrais, antes da pandemia. Em 2020, o Coletivoz Sarau de Periferia, em parceria com a Editora Venas Abiertas, lançou o livro de coletâneas poéticas À Luta, À Voz, reunindo 22 autores de periferias de Belo Horizonte e cidades da região metropolitana. Os livros são vendidos também no boca a boca, nas ruas e eventos. “A partir disso muitos poetas tiveram a oportunidade de fazer o próprio livro, pra negociar, se divulgar e finalmente entrar no mercado literário”, afirma Rogério Coelho.
Foto: imagem de publicação do coletivo no Facebook
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