Microbiologista tira dúvidas sobre mutações, cepas e variantes da COVID-19

por Marina Monzillo
Feb 12, 2021 en Reportagem sobre COVID-19
Imagem microscópica de uma célula humana sendo atacada por coronavírus.

Temos algo sem precedentes na história da humanidade no que diz respeito ao monitoramento de novas variantes de vírus, e Rômulo Leão, mestre em microbiologia e doutorando em imunologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), credita esse feito à competência dos órgãos de vigilância, que estão acompanhando de perto as mutações que têm gerado novas versões do SARS-CoV-2 e estão causando preocupação, principalmente no Reino Unido, na África do Sul e em Manaus, no Brasil. 

Leão, que é integrante da Equipe Halo, iniciativa da ONU de combate à COVID-19, foi o convidado do webinar "COVID-19: Mutações, novas cepas e variantes", realizado pelo Fórum de Reportagem sobre a Crise Global de Saúde, em 11 de fevereiro. No evento online, ele explicou por que, apesar do maior potencial de infecção e da possível fuga à resposta imune por parte dessas variantes, não há motivo para se acreditar em um fenômeno de neutralização das vacinas que estão sendo usadas no combate à pandemia. 

 

Veja a seguir os principais pontos da conversa. 

Definições e diferenças

  • Mutação, cepa, variante. Leão explicou a diferença: mutação é um fenômeno comum da biologia, uma alteração do material genético. “Toda vida na Terra se comporta de maneira padronizada, os organismos se multiplicam, geram descendentes, têm material genético, que é o conjunto de instruções do que precisa fazer para continuar se multiplicando”, disse. A base genética pode ser de DNA como a nossa, ou de RNA como é a do coronavírus. As alterações podem acontecer por fatores externos ou por processos biológicos ao acaso. “A ‘máquina de cópia’ do material genético não é perfeita. No caso dos vírus, não têm uma maneira de corrigir os erros, e eles são passados adiante.” 

  • Leão acrescentou que, quando se entra em cepa e variante, estamos indo um passo além. “Variantes, cepas, isolados e outras denominações são o conjunto de mutações que um mesmo organismo apresenta. Uma variante não tem uma mutação só. A do Reino Unido, por exemplo, tem pelo menos 17 mutações relevantes”, explicou. A principal diferença entre cepa e variante é que as análises hoje em dia são genéticas, por métodos moleculares ― para isso se usa o termo variante. “Porque são hipóteses de como o organismo se comporta na natureza, a partir de análises do material genético. Antigamente, se falava cepa ou isolado, porque partia do reconhecimento clínico e não experimental. Depois se investigava e se via que havia alterações no mesmo organismo”. De qualquer modo, são sinônimos e podem ser igualmente usados, porque hoje é possível partir dos dois princípios e se chegar ao mesmo lugar. 

Mutações do SARS-CoV-2

  • O surgimento dessas mutações são, de fato, erro na cópia das sequências, mas o que faz essas versões ganharem território são pressões seletivas, aspectos sociais e aptidão para se espalhar mais rápido em uma determinada população. Leão recorda que, no Reino Unido, quando começou a surgir a variante, estava acontecendo a flexibilização do isolamento social, o que ajudou a capacidade do vírus de se espalhar mais rápido e se tornar o mais dominante. “Quando a gente fala das variantes, basicamente, o que estamos descrevendo são as capacidades adicionais ou melhoradas da perspectiva do vírus. Qual o cenário ideal para um vírus? Capacidade de se multiplicar bem e se espalhar rápido na população: ele quer sobreviver e perpetuar.” 

  • Atualmente existem variantes que causam preocupação às unidades de vigilância, porque nos laboratórios se comparam materiais genéticos de dois vírus diferentes e se consegue dizer, com certo grau de precisão, os cenários. Pelo menos três variantes começaram a apresentar o mesmo padrão de mutações, alterações na proteína spike. “O coronavírus é uma estrutura simples, casquinha redonda feita de proteínas, capa de gordura, e código genérico anotado em fitas de RNA. Uma das proteínas mais presentes no vírus é a spike, que fica do lado de fora. Além de montar a estrutura do vírus, ela funciona como uma chave, reconhecendo locais nas células para deixar o vírus entrar.” 

  • Por essa proteína ser a mais presente e a mais externa, é mais reconhecida pelo nosso sistema imunológico. Nossos anticorpos, na maioria, são produzidos para a proteína spike. “Ela é composta de pouco mais de 1.500 aminoácidos. Ao redor do mundo, notou-se que a região do 501 estava sofrendo mutações, que conseguem se ligar de forma mais forte às células. Isso deixou os cientistas de aviso desde maio (de 2020), mas não se via isso acontecer com frequência. Na região 444, também eram frequentes mutações ao redor do mundo, mas não havia nada significativo até então”, contou o especialista. 

Consequências para a vacina

  • Se anticorpos foram desenhados para essa região que sofreu mutação depois, teoricamente, o esforço do nosso sistema imune em combater o vírus seria desperdiçado. Isso acontece com outros vírus, chama-se evasão da resposta imune. Esse tipo de mutação poderia aumentar a chance de ter a doença de novo, porque o sistema imune não consegue entender que já viu o vírus antes. A primeira vez que uma maior afinidade com o receptor e o escape à resposta imune se tornaram relevantes foi no Reino Unido, em setembro. “A retomada dos casos foi maior que o início da pandemia, começaram a fazer esses testes de sequenciamento genético e viram que a maior parte das sequências de quem estava ficando doente, tinha esse tipo de mutação, a 501. Foi um alerta para o mundo”, Leão disse. 

  • Outros países começaram a investigar esses padrões de mutação, Na África do Sul, a 444 começou a se tornar relevante, além de outras que também aumentam a capacidade de evasão. No Brasil, a mutação 551 gerou duas variantes: a P1, de Manaus, que tem causado infecção mais rápida, ou seja, tem maior afinidade, e fuga da resposta imune; e a P2, no Rio de Janeiro, com o mesmo potencial. “Isso mostra como cada país precisa manter uma política dura de combate ao coronavírus, porque acabamos de ver que as variantes podem surgir de maneira independente em cada território [e] não estão relacionadas. A do Brasil não veio do Reino Unido, por exemplo. Precisamos de colaboração internacional para manter a vigilância e a ação contra o coronavírus”, opinou Leão, lembrando que, quando há subnotificação de casos, certamente também há subnotificação de variantes.  

  • Ele ressaltou que, a princípio, não há motivo para ter medo de tomar qualquer uma das vacinas. “Tome a vacina disponível, não se preocupe com as variantes ou que a vacina não funcione”, disse, explicando como uma vacina é desenvolvida. “A informação que a gente quer dar para o sistema imunológico é o componente do vírus que é o mais comum e mais fácil de ser identificado, no caso do coronavírus, a proteína spike. Mutações que são capazes de causar evasão poderiam impactar a eficácia das vacinas, mas a boa notícia é que as vacinas usam pedaços grandes de proteína, às vezes, inteira. Mesmo que o sistema imune não consiga identificar a 444, ainda tem o resto da proteína para identificar. Ainda conseguimos a resposta.”Ele cita o exemplo da Coronavac, que usa o vírus inteiro inativado, o que diversifica a resposta imune.  

  • Em algum grau, a eficácia das vacinas pode ser reduzida, mas Leão explicou que elas foram testadas em países onde os casos cresciam e as variantes já estavam circulando. De certa forma, os testes já consideram essas variantes. “Precisamos de mais dados para confirmar isso. Em laboratório, os anticorpos da vacina de Oxford encontraram dificuldade na África do Sul, mas isso não é conclusivo. Não se considera ainda uma hipótese real.”

  • Segundo o especialista, as plataformas das vacinas são fáceis de serem modificadas para incluir novas variantes. “Podemos desenhar material genético novo e incorporar à vacina em menos de seis meses. É possível diminuir a defasagem que uma variante pode causar. Até agora, não tem como tornar a vacina inútil”. Com esse bom prognóstico de enfrentamento mesmo com variantes circulando, Leão disse acreditar que não há motivo para mudar estratégia de vacinação ou deixar alguma vacina de lado.


Marina Monzillo é jornalista freelancer com 20 anos de experiência em diversas áreas, como cultura, turismo, saúde, educação e negócios.

Imagem sob licença CC no Flickr por Stuart Rankin