Cê viu isso? Um jornal criado por moradores de uma comunidade de Belo Horizonte

Aug 29, 2021 en Engajamento da comunidade
Cê viu isso? Moradores criam jornal sobre a Covid-19 na favela mais antiga de Belo Horizonte

A caminho do trabalho, Valéria Borges começou a reparar em uma senhora que passava por ela quase todos os dias. A situação a deixou intrigada. Com um microfone e uma câmera na mão, ela foi atrás da notícia.  E conseguiu saber que a tal senhora tinha sessenta e poucos anos, acordava todo dia às cinco da manhã. Na pandemia, ela ficou sem trabalho, sem as faxinas que fazia. Então ela começou uma horta em cima do viaduto. Daquela horta ela tirava tomate e outras coisas pra vizinhança. “Ela vem do beco dela, com baldinhos e baldinhos de água, até umas oito horas da manhã. Foi uma das matérias que eu mais gostei de fazer”, diz Borges.

 

Histórias como essa são contadas por um jornal ambulante dos moradores da comunidade Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte. O Cê viu isso? surgiu com o objetivo de levar informações sobre a Covid-19 para a população local de uma forma simples e direta. “A gente estava vendo muita informação técnica e eu queria passar pra nossa comunidade a coisa como ela realmente é, com uma linguagem que as pessoas do território pudessem entender”, afirma Borges, que mora e é líder comunitária da Pedreira.

 

A proposta surgiu no início da pandemia, em uma conversa com a amiga e jornalista Élida Ramirez. As duas já haviam pensado em criar um meio de comunicação no território, mas foi com a chegada da pandemia que a ideia se concretizou.

 

Jornalismo inclusivo, democrático e divertido

 

O primeiro passo foi planejar. O segundo foi apresentar a proposta aos moradoras e moradores. A ideia inicial era fazer as produções de casa, para manter a segurança dos repórteres e da população. Porém, elas logo perceberam que para informar sobre a pandemia na periferia, era necessário estar nas ruas. “A gente não queria esse afastamento das pessoas, então criamos um jeito de sair com segurança”, conta Élida, que organizou uma vaquinha para comprar alguns materiais básicos como luzes, microfone e fundo de chroma key.

 

O jornal comunitário é formado por pessoas com formação acadêmica em Jornalismo e pessoas que atuam como jornalistas embora não tenham essa formação acadêmica. Borges desempenha um grande papel de comunicadora na comunidade. O levantamento das notícias é feito por todos os integrantes do jornal e a escolha do que será coberto acontece em reunião da equipe. Não há um número certo de integrantes da equipe porque esse número varia de acordo com a disponibilidade dos voluntários. O jornal está sempre aberto a acolher os moradores interessados em participar do jornal.

 

O pessoal chama o Cê viu isso? de jornal ambulante justamente porque ele é um jornal que se divulga a partir das andanças da equipe pela comunidade. Além dessa forma de distribuição oral, o jornal é também divulgado por fotos, vídeos e textos nas redes sociais (Whatsapp e Instagram). Não há material impresso.

 

Borges carrega um microfone que funciona como alto-falante e percorre com a equipe as ruas da comunidade, anunciando as notícias da pandemia enquanto investigam denúncias e gravam vídeos. A intervenção chama a atenção de moradores e alcança quem não têm acesso à internet. Uma forma democrática, divertida e inclusiva de levar a informação.

Borges e seu microfone
Equipe percorre as ruas e becos da comunidade Pedreira Prado Lopes

 

O primeiro vídeo foi publicado no dia 9 de janeiro deste ano. Logo no início é possível ouvir o seguinte diálogo entre Borges e um morador da comunidade: “Cadê sua máscara?”, “Tá no bolso”, “E seu bolso tem nariz?” O uso do humor é estratégico: todo mundo cai na risada e o recado está dado. Além de abordar a população nas ruas, o jornal faz matérias sobre as ações de enfrentamento à Covid-19, a situação dos postos de saúde, os desafios da comunidade devido a suspensão das escolas e todo tipo de notícia sobre o assunto.

 

Com a produção do Cê viu Isso?, Borges vê o seu papel ir além da comunicação: sua presença é uma referência na Pedreira Prado Lopes. "O pessoal me vê na rua e já corre para colocar a máscara", brinca. Ela conta que os moradores têm se envolvido muito e procuram o grupo para sugerir pautas, demonstração de que o projeto tem cumprido com o objetivo de se tornar um jornal comunitário colaborativo.

Morador sendo entrevistado
Morador da comunidade é entrevistado por Rosana Nunes Martins, colunista do jornal

 

A prática de um sonho

 

Os desafios de quem pretende fazer uma cobertura detalhada e popular da Covid-19 são grandes – principalmente se o processo acontece de forma não remunerada, como é o caso do Cê viu isso?. O projeto vem se sustentando financeiramente a partir das doações de amigos e das contribuições que chegam pelo WhatsApp. Um dos objetivos do grupo é poder remunerar de forma justa quem contribui com o jornal.

Moradora entrevistada
Valéria Borges entrevista uma moradora sobre a importância do uso de máscara

 

Outra vontade é a de expandir a iniciativa. “O meu desejo é que este seja um projeto piloto e que as pessoas consigam replicar nos seus espaços, nas suas periferias”, afirma Ramirez. A jornalista também sonha em chegar às instâncias legislativas para que o repasse de recursos públicos para produção de comunicação comunitária se transforme em lei.

 

Poder levar informações verdadeiras em tempos incertos é o que motiva a equipe a seguir trabalhando, como conta Borges: “A pandemia deu a oportunidade de colocar em prática o sonho que já era nosso há muito tempo, de democratizar a informação, das pessoas saberem sobre seus direitos, seus deveres e sobre o que realmente acontece.”

 

Fotos: Lucas Bois

Foto da capa: Equipe do jornal Cê viu isso? Da esquerda para a direita: Max Miller, Miriam da Silva, Stefanny Elias, Élida Ramirez, Gabriela Reis, Valéria Borges, Carla Letícia Teixeira e Rosana Nunes.

Juliana Afonso é jornalista (UFMG) e mestre em Escrita Criativa (Universidade de Sevilha, Espanha). Escreve sobre Turismo, Cultura, Política e Direitos Humanos. Lucas Bois é jornalista, professor de artes, fotógrafo e videomaker. Nas pausas do trabalho, ele cuida das plantas do quintal.