O negacionismo brasileiro: um inimigo no combate à pandemia

May 3, 2021 en Reportagem sobre COVID-19
Pessoa com máscara dizendo "eu sou médico e apoio o tratamento precoce"

Autoridades mundiais passaram a temer a situação brasileira no enfrentamento à COVID-19. Afinal, o Brasil é foco de novas variantes do vírus. O país está hoje atrás somente dos Estados Unidos e Índia em número de mortes e casos do novo coronavírus, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Mas há outro fator que contribui para a tragédia: o negacionismo de boa parte da população brasileira. Para os jornalistas que buscam combatê-lo, é importante tentar entendê-lo.

Não muito diferente do governo Trump nos Estados Unidos, a resposta do governo brasileiro tem sido minimizar os efeitos da COVID-19, espalhar tratamentos não comprovados e criar um ambiente de desconfiança. Mas alguns médicos brasileiros vão além: rejeitam evidências científicas e defendem remédios sem eficácia. Por que as pessoas se negam a reconhecer a seriedade de um vírus que matou mais de 400 mil brasileiros

“A negação é uma estratégia, um mecanismo de defesa do ego que leva a evitar uma realidade. Apesar de sua insistência, o negacionismo nunca muda a realidade que quer negar, pois suas ideias vêm de uma observação simplista, do senso comum”, diz o psicólogo Rossandro Klinjey. “Como a realidade vai sendo apresentada a todo instante, essas pessoas começam então a desacreditar de todas as fontes — mídia, ciência, organismo internacionais — e tudo mais que for contra a sua forma de ver o mundo.”

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Pandemia politizada

Desde o início da pandemia, o governo brasileiro criou uma falsa dicotomia entre a economia e a COVID-19. “Se o presidente Bolsonaro admitisse claramente que lockdown funciona, cloroquina não cura COVID e que a economia só vai andar com o fim da pandemia, muita desinformação iria arrefecer”, avalia o jornalista Edgard Matsuki, editor do boatos.org, lembrando que Bolsonaro não só influencia as notícias falsas como também, como cidadão, é influenciado por elas.

Matsuki diz procurar combater as "pequenas histórias” falsas para evitar que elas façam com que grandes teses falsas se reforcem. “O grande problema não está em desmontar o argumento e sim fazer com que o negacionista deixe de disseminar a desinformação”, acrescenta Matsuki. 

A intensa polarização política vivida no Brasil se revelou um fator agravante para a pandemia. Ana Rita Cunha, chefe de reportagem da agência Aos Fatos, pondera: “Não usar máscara deixa de ser uma posição sanitária e passa a ser a sua identidade política e isso a checagem não dá conta.”

Cunha acrescenta que há uma falta de compreensão da ciência e um desconforto sobre a incerteza de que não se tem uma resposta para tudo. "Esse ambiente de insegurança, de falta de perspectiva, alimenta o negacionismo e a visão de que há uma saída simples”, diz. 

Mariana Varella, cientista social e jornalista de saúde, responsável pelo portal Drauzio Varella, concorda: “A ciência oferece muito mais dúvidas do que certezas”. Varella ainda exemplifica: “No começo da pandemia, por ser um vírus novo, a gente dizia que a ciência ainda não sabe, a gente não sabe e continuamos dizendo ainda. Essas campanhas de desinformação tinham lá um tratamento barato, com drogas já conhecidas, acessíveis e que prometiam curar as pessoas. É algo muito sedutor.” 

Quebrar este círculo de ignorância sobre a pandemia é um desafio para os jornalistas. “A gente não chega a esses lugares em que a desinformação consegue chegar porque ela circula na base da confiança. É um tio que mandou para o sobrinho, o pai, a amiga de faculdade que mandou no grupo. Então o jornalismo profissional tem essa limitação, além da imprensa viver um momento de descrédito”, diz Varella. 

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Desinformação: um problema antigo não só no Brasil

Varella explica que o negacionismo não é uma invenção brasileira e que, justamente na saúde, a campanha de desinformação é pesada e frequente. “Há alguns anos, por exemplo, tivemos problema na campanha de vacinação contra o HPV. Vimos muito material dos movimentos antivacina da Europa e dos Estados Unidos, que dava uma roupagem de estudo produzido fora. Isso foi muito difícil de combater e a gente teve até queda na vacinação do HPV.”

O jornalismo especializado na checagem de dados nunca trabalhou tanto como agora. E serve de fonte para outras publicações. ”Desde o início da pandemia, já desmentimos mais de 700 boatos relacionados à COVID-19, quase dois por dia. Desde o nosso primeiro desmentido sobre a pandemia, em janeiro de 2020, tivemos mais de 67 milhões de visualizações”, conta Matsuki, que também investe na checagem de vídeos, “Temos um canal com 65 mil inscritos e quase 5 milhões de visualizações.”

“A produção da informação é mais devagar do que a produção da desinformação”, diz Cunha. “Inventar uma história ou conectar fatos de forma inverídica é muito mais fácil do que consultar todas as fontes envolvidas ou ir atrás de entender o contexto daquela informação”. Ela reforça o comprometimento jornalístico: “É preciso mais responsabilidade na divulgação de dados científicos para não tirar de contexto o resultado de uma pesquisa. No começo da pandemia, por exemplo, víamos muitas manchetes anunciando estudos in vitro, como se já fossem resultados definitivos sobre medicamentos. Temos que ter padrões éticos e uma apuração mais rígida para gerar menos ruídos de comunicação.”

Como combater o negacionismo?

A cobertura da pandemia também pegou muitas redações desprevenidas. “Eu costumo falar que a área da saúde é uma área deixada de lado — nas redações você tem poucos profissionais preparados e qualificados para cobri-la”, alerta Varella, “E de repente a gente viu agora todos tendo que cobrir saúde e é difícil porque você tem que saber ler estudos, tem que entender vários conceitos que a gente só aprende na raça mesmo, com a mão na massa. Eu espero que isto venha para ficar.”

Cunha acrescenta que a área educacional tem que ser uma aliado do jornalismo profissional no combate ao negacionismo: “A gente vive um novo momento informacional, em que a gente tem que lidar com uma tonelada de informações circulando o tempo todo, cada vez mais rápido, com menos contexto e acho que as escolas têm um papel fundamental para dar ferramentas aos alunos de como ler esse mundo e como filtrar as informações.” 


Fabiana Santos é brasileira e mora em Washington, DC.  É jornalista freelance, produtora e editora de vídeos, mestranda em Relações Interculturais e responsável pelo site Tudo Sobre Minha Mãe.

Imagem mostrando pessoa com máscara exibindo campanha de médicos brasileiros em defesa do tratamento precoce contra a COVID-19, que não tem evidências científicas e não é recomendado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Foto sob licença CC por Marcos Corrêa/PR via Palácio do Planalto no Flickr.