Correspondente estrangeira no Brasil: entre paixão e desafios

Mar 8, 2021 in Temas especializados
Avião voando com a estátua do Cristo Redentor no pano de fundo no Rio de Janeiro

Cheguei no Rio de Janeiro em janeiro de 2010 como correspondente para a rádio francesa RTL, onde tinha trabalhado como aprendiz, em Paris. Tinha me formado em jornalismo na SciencesPo Paris e sonhava em não ter rotina, e poder trabalhar em um lugar diferente a cada dia com o meu microfone para contar histórias. Não falava português, não sabia nada do Brasil além dos clichês de samba, carnaval e futebol. Também queria começar tudo de novo e (por que não?) casar e ter filhos. Este era o meu projeto de vida com 23 anos.

A paixão pela minha profissão já sofreu arranhões, mas posso afirmar que em 2021, defendo mais do que nunca a importância de fazer reportagens e contribuir ao debate público com informações apuradas. 

Marie Naudascher no Brasil
Marie Naudascher. Foto: Chico Ferreira.

Pés no Brasil e cabeça multicultural

A liberdade de trabalhar num país distante das minhas raízes me obrigou a abraçar uma nova cultura. Como correspondente, sempre fico dividida entre a necessidade de explicar para quem não conhece o Brasil e a de mostrar o que só existe no Brasil. Por isso, a relação de confiança com os editores é fundamental. Trocar ideias com os meus chefes e ver o que para uma audiência francesa é diferente, chocante ou estranho, sempre me ensinou muito. 

O exemplo mais recente que me vem à mente é sobre uma reportagem que fiz para a rádio Europe 1 mostrando os motéis. O que encantou a minha editora não foi o fato de ter um espaço para o casal, foi a piscina privativa dentro do quarto. Na minha reportagem, me parecia óbvio. Já tinha feito reportagens tanto no Rio de Janeiro em motéis luxuosos e agora em São Paulo, então a piscina não me chamou atenção. Mas tinha que insistir neste luxo para uma audiência europeia. 

Um assunto mais sério também me mostrou o quanto é difícil ser correspondente. Em maio de 2016, um dos meus editores escreveu, furioso: “Como você pode escrever que a destituição da presidente Dilma Rousseff é um golpe de Estado quando a maioria dos deputados votaram a favor do impeachment? Como eu podia resumir em 50 segundos o que estava acontecendo no Congresso naquela noite? Nunca resolvi essa equação. 

[Leia mais: Os altos e baixos da correspondência internacional]

 

Meu trabalho é baseado nesse vaivém entre as duas culturas, os dois sistemas políticos, as dinâmicas religiosas. No meu dia a dia, assisto tanto às notícias da Europa quanto as do Brasil. Por exemplo, a cultura do nascimento por cesárea é algo surpreendente, que apesar de acontecer em outros países do mundo em menor proporção, chama atenção de um ouvinte francês. E foi a primeira reportagem que fiz no final de 2020, em plena pandemia, numa maternidade de São Paulo.

Também preciso pensar no que interessa um ouvinte francófono na África sobre o Brasil. Para o programa “Vu d’Allemagne” da rádio Deutsche Welle, eu faço reportagens de 5 minutos sobre a identidade afro-brasileira, e sendo mais de 55% da população, as pautas não faltam. 

Flexibilidade e parcerias

Já quis desistir, já quis achar um emprego registrado, já quis voltar para a França. Confesso que sim, tudo isso já passou pela minha cabeça. Ser freelance não é fácil. Mas eu tenho a liberdade vertiginosa de escolher os meus trabalhos, e não sei se teria conquistado isso no meu país de origem.

Naudascher fazendo uma reportagem num templo evangélico inclusivo no Rio de Janeiro, em 2012.  Arquivo pessoal.
Naudascher fazendo uma reportagem num templo evangélico inclusivo no Rio de Janeiro, em 2012.  Foto: Lamia Oualalou.

 

Em 2014, escrevi o meu primeiro livro “Les Brésiliens”, uma série de reportagens sobre a identidade brasileira. Dois anos depois, co-escrevi “Génération Favela”, com retratos de jovens que mudam as realidades das favelas e periferias no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi uma parceria com o quadrinista Alexandre de Maio da qual tenho muito orgulho. O  livro fica, envelhece, às vezes parece que tudo que escrevi em 2014 não existe mais, mas é um retrato de uma época.

Eu também fui muito sortuda. Nessa vida de jornalista, conheci uma colega muito importante, que se tornou uma grande amiga. Como cheguei sem conhecer nada do país, precisei trabalhar bastante para conhecer fontes pertinentes. Logo no primeiro ano, a preciosa mentoria da Lamia Oualalou, que também trabalhava como correspondente no Brasil, mudou os meus horizontes. Ela sempre parecia segura de si, sabendo onde achar as informações e sabia produzir, escrever, investigar, ao meu ver, sem esforço nenhum. Obviamente, era fruto de uma década de experiência no Brasil e anos na redação em Paris.

Fizemos várias reportagens juntas: ela tirava as fotos, eu gravava o som. As matérias dela sempre me pareciam brilhantes. Agora que a vida e a pandemia nos colocou em continentes diferentes, percebo o quanto a nossa parceria era única e valiosa. Parceiros de trabalho valem ouro, e não canso de buscar outras ou outros.

[Leia mais: Ficar ou ir embora? Freelancers internacionais enfrentam desafios durante a pandemia]

 

Ano passado, a universidade entrou novamente na minha vida profissional, e voltei a estudar. Eu estou terminando o meu mestrado na ECA-USP, pesquisando podcast narrativos na França. Meu orientador, o prof. Eduardo Vicente, ainda está esperando o texto da minha qualificação, mas escrever que eu estou terminando me faz bem

Também comecei a dar aulas de jornalismo este ano no mestrado da escola de jornalismo da SciencesPo onde me formei uma década atrás. Apesar dos desafios das aulas online, estou adorando conhecer uma nova geração de jornalistas.

O podcast apareceu na minha trajetória de radialista em 2018. Eu estava grávida do meu segundo filho, e fiquei bem surpresa, mas isso me deu uma das melhores oportunidades profissionais da minha vida. Fui contratada pela fundadora francesa da marca Timirim para produzir um podcast, em português, sobre gestação, parto e puerpério. O podcast, que se chama “Meu parto, minhas regras?”, tem 7000 reproduções e 35 episódios. Virei uma ativista da sororidade e do não julgamento. Isso vingou com a maternidade, mas faz parte do meu DNA de jornalista também.

Já me envolvi em trabalhos voluntários, principalmente na Associação dos Correspondentes de São Paulo (ACE) e dediquei cinco anos ao trabalho de vice-presidente, e de presidente. 

Recentemente, achei num grupo fechado de jornalistas correspondentes para rádios francesas no mundo inteiro o que eu sempre busquei: dicas técnicas, apoio administrativo, lugar para desabafar e melhorar as nossas condições de trabalho. Eu descobri que eu tenho muito em comum com colegas que eu nunca vi, mas trabalham para as mesmas emissoras, e em dinâmicas parecidas com as minhas, em outros países. Essa solidariedade me salvou nessa pandemia!

Aproximadamente mil matérias e reportagens mais tarde, a minha paixão pelo meu trabalho só se fortaleceu, enquanto a dificuldade em cobrir o Brasil sempre me pega de surpresa. Hoje, eu e meu companheiro lidamos com os desafios de uma família franco-brasileira, com três meninos, estudando e trabalhando a distância, e tentando deixar a rotina um pouco mais suave para todos.


Marie Naudascher, jornalista, correspondente para o diário francês "La Croix" e a rádio "Europe 1", produtora de podcast, sediada em São Paulo.

Imagem principal sob licença CC no Unsplash por Cláudio Luiz Castro