Ouvir, investigar e transformar: o que aprendemos após as enchentes no sul do Brasil

بواسطة Rafael Gloria
Aug 4, 2025 في Reportagem de meio ambiente
Enchente RS

Em maio de 2025, um ano depois das enchentes que causaram a maior tragédia sócio-ambiental do Rio Grande do Sul, aconteceu o curso Jornalistas Pelo Clima, em Porto Alegre. O evento reuniu uma série de profissionais da comunicação que compartilharam seus conhecimentos para uma melhor cobertura climática para 40 jornalistas da cidade. 

A realização foi uma iniciativa da organização Nonada Jornalismo, com co-realização da Matinal Jornalismo, e apoio financeiro e institucional da organização internacional Repórter Sem Fronteiras. Saiba aqui alguns dos principais pontos tratados para uma melhor cobertura.

Curso Nonada
Participantes do curso Jornalistas Pelo Clima, Porto Alegre, 05/2025. Foto: Desiree Ferreira

O clima também é território e ancestralidade

A educadora indígena Raquel Kubeo trouxe um ponto essencial ao debate: não há como falar de mudanças climáticas sem falar da colonização dos territórios e dos saberes. Para ela, o impacto da crise climática sobre os povos originários é parte de um processo contínuo de violação — e também de resistência. É preciso descolonizar a cobertura jornalística e reconhecer os nomes e identidades dos povos, escutando suas vozes não só como vítimas, mas como protagonistas de soluções e formas sustentáveis de viver no mundo.

Kubeo lembrou que muitos povos vivem em contexto urbano, como na periferia de Manaus, e sofrem múltiplas camadas de invisibilidade: racial, territorial e climática. Para cobrir com respeito e profundidade, é essencial que jornalistas reconheçam essa pluralidade.

Um tema transversal

Cobrir a crise climática vai além de relatar enchentes, queimadas ou ondas de calor. Envolve uma mudança de perspectiva: tratar o clima como um tema transversal que impacta a saúde, a alimentação, a economia e os direitos humanos. Essa foi a ideia que trouxe a professora e pesquisadora Eloisa Beling Loose, da UFRGS, que também propôs uma reflexão fundamental: “Como comunicamos nossa relação com a natureza?”. Segundo ela, a forma como nomeamos a crise (emergência, colapso, crise) molda a percepção pública e define os caminhos possíveis.

Loose lembra que a cobertura não pode se restringir aos efeitos visíveis, mas precisa apontar para as causas estruturais: queima de combustíveis fósseis, desmatamento e o modelo de desenvolvimento vigente, por exemplo.

Para qualificar a cobertura climática, a pesquisadora também sugere que jornalistas considerem trazer três conceitos essenciais em suas coberturas: adaptação, que trata das formas de lidar com os impactos do clima; mitigação, focada na redução das emissões de gases de efeito estufa; e resiliência, que envolve a capacidade de comunidades se recuperarem e se transformarem após eventos extremos. 

Escuta sensível como ferramenta de apuração

Nos momentos de catástrofe, escutar é mais do que ouvir. É reconhecer que não estamos no mesmo lugar das pessoas afetadas. Para a jornalista Anna Ortega, coordenadora de jornalismo do Nonada, é essencial colocar os pés no chão — tanto no sentido literal quanto simbólico.

Em sua cobertura das enchentes no RS, Ortega conviveu com o desafio de abordar pessoas em situações de vulnerabilidade. “A escuta é mais uma espiral do que uma linha reta. Ela exige presença, sensibilidade e também cuidado com quem escuta.”

A jornalista Geórgia Santos, do portal Vós e uma das autoras do podcast Fim do Futuro sobre as enchentes de maio de 2024,  reforça: “Estude o ambiente, pesquise sobre as pessoas, compreenda os hábitos, não tenha pressa.” Para ela, esses são passos fundamentais para construir confiança e colher relatos que realmente importam — inclusive aqueles que não estão no centro da atenção midiática. 

Além disso, é preciso evitar a naturalização do desastre e o discurso salvacionista de que a reportagem “vai mudar a vida” da fonte. Reconhecer essa limitação é parte de uma escuta ética.

Investigue o que (e quem) está por trás da crise

A aula da jornalista Marcela Donini reforçou o papel da investigação na cobertura climática. Ela destacou como parte da imprensa ainda adota uma cobertura reativa e espetacularizada, centrada em depoimentos trágicos e serviços de emergência. 

Ferramentas como o sistema de multas do IBAMA  e os pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) podem revelar diversos dados interessantes, como os de empresas e políticas públicas que contribuem para o agravamento da crise. Ela também defende o uso do jornalismo de soluções como estratégia para  apresentar alternativas reais e mostrar que é possível construir saídas.

Pautas além do óbvio  

Pensar em pautas climáticas fora do momento de crise é um dos grandes desafios. Isso significa falar de clima mesmo quando não há desastre, buscar histórias locais, identificar vulnerabilidades invisibilizadas e conectar áreas como saúde mental, infância, mobilidade urbana e segurança alimentar. Uma boa cobertura climática é, ao mesmo tempo, local e global; científica e sensível; crítica e transformadora. Ela exige presença contínua, vontade de investigar estruturas e disposição para ouvir — o outro, o território e a si mesmo. 


Foto: Rafael Glória (Porto Alegre, 14/05/2024)