Coletivo Lena Santos: por um jornalismo antirracista

Jan 31, 2022 em Diversidade e Inclusão
Equipe do coletivo antes da pandemia

Como construir uma mídia negra e antirracista? Essa foi uma das questões que motivaram a criação do Coletivo Lena Santos de Jornalistas Negras e Negros, em 2019, na cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. O objetivo é denunciar o racismo e os ataques aos jornalistas. E também atuar na promoção do debate sobre a realidade de trabalho dos jornalistas negros, questionando a falta de representatividade.

O movimento destaca, ainda, os integrantes que conquistaram projeção e as iniciativas que visam construir uma mídia democrática. O nome do coletivo faz uma homenagem à Lena Santos, umas das primeiras apresentadoras negras do Brasil, âncora do Jornal Hoje - Edição Minas, na TV Globo.

O coletivo surgiu a partir da parceria das jornalistas mineiras, Márcia Maria Cruz e Edilene Lopes, ao finalizarem um capítulo do livro Vozes Negras em Comunicação: Mídia, racismos, resistências, organizado pela professora Laura Guimarães Corrêa. “Eu sugeri que a gente fizesse um artigo falando de que maneira o fato de um jornalista negro estar nas redações poderia influenciar, modificar, impactar na cobertura”, afirma Márcia. Da necessidade em entrevistar outros profissionais negros para saber das suas experiências nas redações, surgiu um grupo de WhatsApp. Hoje já são 83 integrantes atuantes em diferentes campos e veículos.

Por causa da pandemia, as reuniões têm acontecido de forma remota e o grupo mantém contato diário pelo WhatsApp. A jornalista e integrante do coletivo, Ethel Corrêa, explica que as pautas são discutidas gerando matérias para os veículos em que os membros atuam ou postagens nas redes sociais. “O coletivo discute, elabora textos conjuntamente, decide ações e executa”, afirma.

Rompimento com uma cobertura racista

Bruno Torquato,  jornalista e integrante do coletivo, afirma que ainda são muitos os desafios para enfrentar o racismo na cobertura jornalística. “Estava produzindo uma matéria sobre um homem negro que foi agredido na porta de uma distribuidora de bebidas. A Polícia Militar alegou que ele xingou o policial de ‘patrulha’, e meu conteúdo foi publicado com abordagem de ‘Homem negro foi agredido'", explica Torquato. "Depois de publicado, me ligaram para tirar a palavra ‘negro’ alegando que não se tratava disso. Em conversa com editores, decidimos manter, pois a pessoa agredida era negra e tinha todo o sentido no contexto”.  Para o jornalista: "Não podemos ter medo das palavras, dos conceitos. É preciso dizer ‘negro’, ‘preto’, ‘racismo’, ‘racista’, sempre na luta antirracista”.

Os desafios por vagas e cargos de liderança

O déficit de profissionais negros nos veículos de comunicação é um dos apontamentos feitos por Márcia Maria Cruz. “O coletivo nasce com o intuito de fazer uma reflexão de onde estamos e aonde podemos chegar. Nosso primeiro diagnóstico é que continua tendo um percentual minoritário de jornalistas negros nas redações brasileiras e que continua sendo minoritária, também, a ocupação de cargos de liderança e de chefia por esses profissionais”, destaca Cruz.

Essa constatação pode ser observada na pesquisa Perfil Racial da Imprensa Brasileira, de 2021. O levantamento contou com a participação de 1.952 jornalistas em questionários on-line, um estudo nacional por amostragem de casos e entrevistas com jornalistas negros para compreender as questões raciais presentes na profissão. Segundo a pesquisa, apenas 20,10% dos jornalistas de redação se autodeclaram pretos ou pardos e a conclusão é de que jornalistas brancos são mais bem remunerados. 41,7% dos jornalistas negros recebem até R$ 3.300,00, contra 22,9% entre os jornalistas brancos. E os cargos de liderança são predominantemente ocupados por brancos, 61,8% contra 39,8% de negros. 

A realidade tem mudado aos poucos. Uma pesquisa realizada pela UFSC no ano passado sobre o perfil do jornalista brasileiro, identificou um acréscimo na contratação de profissionais negros de 23%, em 2012, para 30% em 2021. O levantamento coletou dados de 7.029 jornalistas. A pesquisa atribui esse aumento justamente ao avanço das lutas antirracistas na última década, às ações de diversidade no mercado e à política de cotas. 

Márcia Maria afirma que são necessárias ações para aumentar o contingente de jornalistas negros, que vão desde a criação de programas de trainee à programas de carreira dentro das redações, como as editorias de diversidade. No entanto, iniciativas que priorizam a contratação de profissionais negros ainda causam polêmica. Foi o que aconteceu com a roteirista Déia Freitas, criadora do podcast “Não Inviabilize”, ao anunciar uma vaga de assistente de roteiro, com salário de R$ 5.000,00.  A vaga exclusiva para mulheres pretas, pardas e indígenas gerou acusações de “racismo reverso". Em seu twitter do @NaoInviabilize, Déia afirmou: “Recebi textos muito bem escritos de travestis pretas e indígenas que hoje são profissionais do sexo porque não tiveram outra opção, mulheres pretas com mestrado que são faxineiras, mulheres pretas com textos incríveis que nunca conseguiram vaga”.

Sobre a repercussão do caso, a jornalista e integrante do coletivo, Etiene Martins, se diz a favor destas cotas e considera que a revolta foi por causa do valor ofertado. "Um salário digno no bolso de uma mulher preta afeta os racistas", diz Martins. "Interessante que essa indignação não acontece quando se publica as pesquisas do PNAD demonstrando que as mulheres negras são a maioria dos desempregados, muito menos quando demonstra que uma mulher negra recebe muito menos que um homem branco, mesmo tendo uma qualificação maior e exercendo a mesma função”.

A força coletiva

Em maio de 2021, o Coletivo Lena Santos realizou o 1° Congresso Nacional de Jornalistas Negras e Negros no Brasil, disponível no Youtube, contando com a participação de jornalistas como Maju Coutinho. O encontro provocou um intercâmbio de experiência profissional e uma esperança de ampliar "este minúsculo espaço que ocupamos nos veículos de imprensa no Brasil”, conforme afirma a jornalista e integrante do coletivo, Názia Pereira. Entre os pontos discutidos no Congresso, Pereira aponta a problematização de que a televisão é o veículo que menos contrata jornalistas negros. “Rádio, jornais e redes sociais abrem um pouco mais de oportunidade. Talvez seja porque nesses veículos não há necessidade do profissional mostrar a cor da sua pele", diz ela.

 “O povo negro representa a maioria da população brasileira, precisa e quer ser visto e se espelhar. Quem empregar mais negros atrairá maior público também”, ressalta Corrêa, que considera a contratação de profissionais negros um aumento na audiência e anunciantes. “Não estão nos dando nada, estão abrindo os olhos para o mercado”.


Foto: Arquivo coletivo Lena Santos no Instagram