A “cultura de redação” está se perdendo. Devemos nos preocupar?

Jun 10, 2024 em Temas especializados
Máquina de escrever

Aquelas redações em que se forjou uma cultura profissional compartilhada no século XX, compondo o que Nelson Traquina chamou de “comunidade interpretativa dos jornalistas”, quase não existem mais. O enxugamento progressivo vivenciado em sucessivos “passaralhos”; o desgaste de formatos tradicionais em que o jornal impresso é praticamente uma peça de museu; a crise da indústria de notícias com o domínio das plataformas digitais; e o “cansaço” das divulgações envolvendo pandemia, emergência climática e desinformação são alguns dos fatores que têm contribuído para que cada vez mais jornalistas busquem novos espaços de atuação profissional.

A digitalização e a desterritorialização dos espaços de produção jornalística mudaram a lógica de transferência de conhecimentos entre gerações de jornalistas. Ao mesmo tempo, novas habilidades são exigidas para o exercício da profissão em um contexto com mais veículos nativos digitais que cobrem assuntos segmentados, muitas vezes sem existir um escritório físico ou rotinas produtivas mais estruturadas, como as tradicionais reuniões de pauta e deadlines

Para Cláudia Nonato, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Escola de Comunicação e Artes da USP, esse movimento de transformação da carreira jornalística começou já na década de 1980, com o Projeto Folha. “Em relação à linha editorial, o projeto pregava a necessidade de fazer um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno, discurso que ainda se mantém na teoria, mas não na prática”, analisa Nonato, que é uma das autoras de “As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista” (Editora Atlas, 2013), juntamente com Roseli Figaro (org.) e Rafael Grohmann.

A chegada dos veículos alternativos

“Com a informatização e a chegada da internet, o trabalho dos jornalistas foi ainda mais precarizado, levando à extinção de cargos e redução de equipes”, complementa a pesquisadora. Daí surgem novos projetos jornalísticos, que são nativos digitais, mas também resultam da insatisfação e falta de oportunidades na mídia hegemônica: “Muitos jornalistas experientes criaram seus próprios veículos e passaram a sua experiência para jovens repórteres, principalmente no início dos anos 2000, com os blogues. Ou seja, nos veículos alternativos, os jornalistas conservam o ethos da profissão, utilizando os mesmos conceitos e métodos das grandes redações”.

Zélia Leal Adghirni, professora emérita da Universidade de Brasília, vai numa direção semelhante ao considerar que a cultura de redação, qualquer que seja a definição, está provavelmente morrendo porque as redações estão morrendo. “Estamos falando do ambiente naquele espaço meio caótico onde jornalistas trabalham? Ou de uma dinâmica de interações multidimensionais, com editorias, idades, perfis diferentes? Ou talvez da estrutura de funcionamento, ao mesmo tempo hierárquica e casual, em que a informação é processada?”, questiona. 

Esvaziamento das redações 

Para Adghirni, a "cultura de redação" foi dizimada pelas mudanças do mercado desde as últimas décadas do século XX, e se esvaziaram ainda mais ao tornar permanente, em maior ou menor grau, o trabalho remoto: “A pandemia de Covid-19 acelerou o declínio das redações físicas e, por extensão, da cultura que as caracterizava”, diz ela.

“Partindo de uma experiência muito pessoal como professora, profissão que exerci durante quase 30 anos, em períodos alternados ou simultâneos com o trabalho de reportagem ou redatora na grande mídia, posso afirmar que foi bastante visível o declínio da visão idealista do jornalismo", explica Adghirni. "Nos primeiros tempos de magistério, os alunos cultivavam o perfil do jornalista-herói; a partir dos anos 2000, com a explosão das tecnologias digitais e o jornalismo online, os alunos já chegavam na universidade com outra ideia, mais próxima do profissionalismo do mercado vigente”. 

Empreendedorismo forçado 

O surgimento de startups digitais de jornalismo têm exigido dos profissionais da área não apenas a capacidade de produzir conteúdo de qualidade, mas também de gerenciar e promover seus projetos jornalísticos como empreendimentos viáveis no mercado atual. Este é o objeto de estudo de Gilberto Scofield, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio e pelo Progama de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (UFF). 

“Quando a gente fala de empreendedorismo jornalístico ou jornalismo empreendedor fica evidente a ideia de uma coisa meio orientada para o mercado, mas o fato é que para o trabalho jornalístico sobreviver e se desenvolver, essas noções de negócio, de métrica, de rede, de tecnologia foram crescendo dentro das novas plataformas digitais nativas como especialidades dentro da carreira de jornalistas”, analisa Scofield.

Jornalista com 36 de experiência, Scofield é mentor de projetos digitais de jornalismo para Meta e International Center for Journalists (ICFJ), e compartilha insights de sua produção acadêmica na newsletter O Ofício, destacando as mudanças no mercado de trabalho dos jornalistas. “Você vai ter que se aparelhar com talentos de negócio, de empreendedorismo, de como colocar o seu negócio de pé, de entender o seu público e saber como você conversa com ele, de entender profundamente sobre métricas”, enumera. 

Novas funções e valores

De fato, novas funções aparecem no rol de atividades exercidas por jornalistas no mercado de trabalho sem que seja relativizada sua identidicação como profissional de jornalismo. É o que observa o professor Samuel Lima, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a partir de sua pesquisa sobre o Perfil do Jornalista Brasileiro. “É um momento de transição de valores e de ressignificação do próprio jornalismo”, diz Lima.

Um sintoma da mudança destacado pelo pesquisador a partir do Perfil, é que, enquanto a imparcialidade vem perdendo terreno como valor primordial entre os profissionais da área, a transparência surge como um princípio cada vez mais valorizado. Para Lima, isso ilustra uma transformação no ethos jornalístico, sinalizando uma adaptação às exigências de um ambiente de mídia cada vez mais complexo e interativo: “A transição da valorização da imparcialidade para a transparência reflete uma busca por novas formas de legitimidade e credibilidade no jornalismo, onde a abertura e a honestidade são vistas como essenciais para o engajamento e a confiança do público”.

Mais diversidade nas redações 

Se a imparcialidade é um valor que está caindo em desuso entre jornalistas, enquanto a transparência ganha relevância, também a diversidade é um princípio jornalístico que encontra mais espaço em iniciativas nativas digitais e já impacta nos meios tradicionais como exigência para uma cobertura mais plural. Este elemento é destacado pela jornalista Natália Viana, diretora da Agência Pública e uma das fundadoras da Associação de Jornalismo Digital (Ajor).

Viana tem um olhar positivo sobre as transformações. “Eu tenho a impressão de que há uma vangloriação de um paradigma antigo, que é de um jornalismo industrial dominado por poucos veículos, esses poucos veículos com uma perspectiva de classe muito alta, com poucos negros, com poucas mulheres, dominados por homens”, analisa. “Acho que se perdeu a convivência com os jornalistas mais velhos, ou seja, que hoje em dia têm mais de 65 anos, por causa de um gap geracional de letramento digital, mas uma coisa que as redações mais modernas e digitais estão ganhando é a diversidade, que é uma prioridade em muitas delas”.

A professora Zélia Adghirni concorda: “Houve, sim, um tempo em que as redações eram lugares pujantes onde se cruzavam perfis, idades e interesses muito diferentes. Na visão romântica, eram ambientes intelectualizados e alegres com uma cultura de humor e autocrítica e uma grande dose de boemia. Não havia muitas mulheres nas redações e o caminho do sucesso às vezes passava por situações constrangedoras pelo assédio dos chefes. Mas a realidade foi mudando aos poucos e as mulheres conseguiram se impor num ambiente extremamente competitivo por meio do trabalho de qualidade”.

Crise de financiamento e desinformação

Além das mudanças do mercado, o fim da obrigatoriedade do diploma universitário no Brasil, decretado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, é lembrado por Zélia Adghirni como fator para quebrar o “último encanto de uma profissão excessivamente idealizada” no século passado. “Não se trata apenas de encanto, mas de uma real desvalorização social do jornalista”, afirma.

A pesquisadora demonstra preocupação não só com a percepção social do jornalista frente a um cenário de desinformação, como também com relação à desvalorização salarial da profissão, após a queda do diploma. Samuel Lima reforça: “Talvez o impacto maior [na identidade do jornalista] seja dado pela dimensão da crise mesmo, da sustentabilidade do modelo de negócio, do financiamento, e também da relação entre jornalismo, jornalistas e a sociedade, ou seja, esses anos de ataque à profissão aqui e em outros países, em que tentaram colar o selo de fake news em tudo aquilo que não era do seu agrado”. 

Fato é que mudanças estruturais decorrem de uma série de fatores e não ocorrem sem o estranhamento de quem as testemunha. Nem sempre há clareza de que se está em meio a uma transição paradigmática. Por essa perspectiva, quando há rupturas na estrutura do paradigma jornalístico, uma nova cultura profissional, antes dada por essa chamada “cultura de redação”, é, simultaneamente, causa e consequência de mudanças estruturais mais complexas.

Dicas de livros sobre o assunto:

-Mudanças no Mundo do Trabalho dos Jornalistas”: discussão dos novos arranjos de atuação profissional em meio à informatização e precarização das redações.

-“Natureza e Transformação do Jornalismo”: autores recuperam as mudanças de paradigma do jornalismo ao longo da história.

-O "Trabalho dos Jornalistas do Brasil - desigualdades, identidades e precariedades" reúne artigos sobre achados da pesquisa sobre a edição mais recente do Perfil do Jornalista Brasileiro, de 2021.


Foto: Canva